O globo, n. 30790, 24/11/2017. País, p. 3

 

Privilégio em xeque 

Carolina Brígido e André de Souza

24/11/2017

 

 

-BRASÍLIA- Sete dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) defenderam ontem que a Corte julgue apenas processos sobre crimes cometidos por congressistas no exercício do mandato, por fatos diretamente relacionados à função pública. Mas o julgamento não terminou, porque o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo, sob o argumento de que o mesmo tema está em debate no Congresso, adiando mais uma vez a decisão para data indefinida. A intenção é diminuir a quantidade de ações penais que tramitam no tribunal constitucional, dando mais celeridade às investigações.

Ao pedir vista, Dias Toffoli sustentou que o Congresso Nacional está discutindo no momento uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que revoga o foro especial para todas as autoridades, com exceção dos presidentes dos três Poderes. O próprio relator, ministro Luís Roberto Barroso, disse, inclusive, que o ideal seria o Congresso Nacional decidir a regra do foro antes do STF, já que a posição do Legislativo prevalecerá.

— Tem uma frase boa do Martin Luther King que eu gosto de citar: “É sempre a hora certa de fazer a coisa certa”. Portanto, eu acho que, se o Congresso, por Emenda Constitucional, cuidar dessa matéria e cuidar de uma maneira positiva, eu acho muito bom. Acho até que, num estado democrático, é melhor que essas decisões sejam tomadas no Congresso mesmo — afirmou o relator.

Atualmente, qualquer crime cometido por deputados federais e senadores, antes ou durante o mandato, é julgado apenas no STF. Quando o político se elege para esses cargos, eventuais processos já abertos contra ele em outras instâncias são transferidos para a Corte. De acordo com a proposta em análise, isso não vai mais acontecer.

A mudança na regra foi apresentada por Barroso em maio. No início do julgamento, três ministros concordaram com ele: Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio Mello. Ontem, mais três engrossaram o time: Edson Fachin, Luiz Fux e Celso de Mello.

A discussão foi retomada com o voto de Alexandre de Moraes, que havia interrompido o julgamento com um pedido de vista na sessão de maio. Ontem, ele defendeu parcialmente a tese de Barroso, afirmando que parlamentares devem ser investigados no STF apenas por crimes cometidos ao longo do mandato. Mas, ao contrário de Barroso, ele declarou que essa prerrogativa poderia ser usada inclusive para crimes comuns, mesmo que não tenham relação com o mandato.

— Aquele que cometeu crime antes de ser parlamentar não sabia se seria parlamentar. Não me parece que a finalidade do foro seja retroagir para proteger aqueles que nem sabiam se seriam ou não parlamentares — ponderou Moraes.

A tese que já obteve maioria no STF afirma que, ao fim do mandato, a investigação aberta na Corte contra deputado ou senador será transferida para a primeira instância do Judiciário. Isso só não aconteceria se a ação penal já estiver totalmente instruída, pronta para ser julgada, uma vez que a transferência atrasaria a conclusão do processo. Ou se o congressista for reeleito.

O relator disse, em plenário, que a proposta dele valia apenas para parlamentares federais. Ao deixar a Corte, no entanto, ele afirmou que a regra poderia ser estendida a todas as autoridades, como ministros, juízes e promotores.

— Quando você estabelece um princípio de direito, e o caso estabelecido aqui é de que o foro só prevalece para os fatos praticados no cargo e em razão do cargo, presentes as mesmas circunstâncias, aplica-se a mesma regra. Portanto, o normal da vida é isso se estender a todas as situações (autoridades) — explicou o relator.

Os crimes comuns praticados por parlamentares também ficariam fora do STF. Ainda segundo a proposta, os crimes praticados antes de a pessoa ser eleita para o Congresso não seriam processados no STF, mas na primeira instância. Se, por exemplo, um senador fosse acusado de violência doméstica, o processo também seria conduzido na primeira instância, ainda que o ato tenha sido praticado ao longo do mandato.

Além de Toffoli, faltam votar os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Antes de pedir vista, Toffoli afirmou que há muitas “lendas urbanas” acerca do foro privilegiado. Ele ressaltou que o STF tem estrutura para conduzir processos penais. Toffoli também afirmou que tem muitas dúvidas sobre as consequências práticas do julgamento. Segundo ele, os advogados poderiam fazer uma série de questionamentos nos casos concretos, o que poderia provocar ainda maior demora para solucionar as investigações.

 

AS PRINCIPAIS DÚVIDAS SOBRE A NOVA REGRA
 

Como fica a situação de deputados federais e senadores?

Ficarão no STF processos sobre crimes cometidos por parlamentares no exercício do mandato, por fatos diretamente relacionados à função. Ao fim do mandato, caso o parlamentar não seja reeleito, a investigação segue para a 1ª instância do Judiciário. O STF não vai julgar processos de congressistas nos quais eles são acusados por supostos crimes cometidos antes de assumirem o mandato. Crimes comuns, como agressão, ficam na 1ª instância, mesmo quando praticados no exercício do mandato.

Se a proposta de Barroso for vitoriosa, os processos serão enviados à primeira instância automaticamente?

Não. O relator de cada processo terá que avaliar se as investigações se enquadram na nova regra do foro e decidir se o caso deve ser transferido.

E se parlamentar ocupava outro cargo público quando ocorreu o suposto crime?

O STF não tratou de casos concretos, e o ministro relator, Luís Roberto Barroso, destacou que isso não estava sendo analisado. No entanto, deu sua opinião pessoal. Para o ministro, a princípio, se um senador cometeu crime quando era governador, o processo não tramitaria no STF e nem no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que é o foro indicado para governadores. A investigação deveria ser conduzida pela primeira instância. Porém, esta dúvida só será esclarecida ao final do julgamento.

A regra vale também para membros do Executivo, do Judiciário e do MP?

Barroso disse que a regra vale apenas para senadores e deputados federais. No entanto, ao fim da sessão, ele declarou que a Corte tende a estender a mesma interpretação para todas as demais autoridades com foro. O alcance da nova regra só deve ser definido pelo tribunal quando terminar a votação. Em todos os casos, os efeitos do julgamento do STF podem perder validade, se o Congresso Nacional aprovar emenda constitucional, em discussão, que acaba com o foro nos três poderes.

A proposta do Congresso é uma reação à discussão do tema pelo Supremo Tribunal Federal?

Sim. Os deputados e senadores entenderam que a proposta de Barroso tem como alvo principal os políticos, apesar de o foro privilegiado beneficiar também membros do Judiciário e do Ministério Público. Como juízes e promotores ocupam cargos vitalícios, teriam direito ao foro permanentemente.

Se a Câmara dos Deputados aprovar o fim do foro no futuro, a decisão do STF fica nula?

Tecnicamente, a decisão do STF não será anulada. No entanto, uma Emenda Constitucional aprovada pela Câmara se sobrepõe ao entendimento do tribunal e, em tese, prevaleceria sobre este. A Corte pode, inclusive, receber nova ação questionando a regra eventualmente aprovada pelos deputados no futuro, o que levaria a um novo julgamento pelo tribunal.

 

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Os prós e os contras

Sérgio Roxo 

24/11/2017

 

 

Falta de definição sobre restrição do foro pode gerar ações protelatórias, avaliam especialistas

e por um lado a restrição ao foro privilegiado deve aliviar de forma substancial a pauta do Supremo com a redução no número de ações criminais, por outro a decisão não está livre de gerar efeitos negativos. Um deles é a possibilidade de que advogados aproveitem a falta de definição sobre alguns pontos da regra para entrar com recursos na Corte com o objetivo de evitar a transferência de um processo para a primeira instância e atrasar o andamento da ação.

Especialistas em Direito acreditam que é preciso, primeiro, saber se a transferência dos casos para a primeira instância será automática ou se passará por decisão dos ministros.

— Em alguns crimes será muito óbvio definir se ele foi cometido ou não em função do mandato. Mas em outros talvez haja uma zona cinzenta — acrescenta Ivar Hartmann, coordenador do projeto Supremo em Números da FGV.

Caso a transferência passe por avaliação do Supremo, precisará ser definido se as partes poderão contestar essa decisão. Neste cenário, caberiam recursos protelatórios. Um exemplo de como os advogados atuariam para atrasar uma decisão pode ser visto em uma ação que tem como réu o ex-deputado Eduardo Cunha, acusado de pedir propina para uma empresa que tinha contrato com a Petrobras.

A defesa de Cunha tem conseguido protelar desde janeiro o envio do processo para a 13ª Vara Federal de Curitiba, comandada pelo juiz Sergio Moro. A ação corre no Tribunal Regional Federal da 2ª Região porque a outra ré, Solange Pereira de Almeida, era prefeita de Rio Bonito (RJ) e tinha foro naquela corte na época do crime. Em janeiro, Solange deixou o cargo de prefeita e perdeu o foro. O TRF-2 definiu pelo envio para Curitiba, mas os advogados têm se utilizado de recursos para evitar que a ação chegue nas mãos de Moro.

Os números não deixam dúvidas de que a quantidade de ações julgadas pelo STF vai cair. Um estudo divulgado em março pela FGV Direito Rio mostrou que se a proposta do ministro Luís Roberto Barroso tivesse sido adotada em 2006, apenas uma de cada 20 das ações teriam sido mantidas no STF.

Há, porém, dúvida se a tramitação das ações na primeira instância aceleraria a sua conclusão, embora os juízes estejam acostumados com casos criminais. De acordo com o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2016 a média nacional de tramitação de um processo era de 4 anos e 4 meses.

— Existe um equívoco em tomar os juízes Sergio Moro e Marcelo Bretas como a média. É uma premissa equivocada. A morosidade é um problema do Judiciário no geral, não só do STF —avalia o professor Rubens Glezer, coordenador do Supremo em Pauta da FGV Direito São Paulo.