O Estado de São Paulo, n. 45388, 23/01/2017. Espaço Aberto, p. A2.
Condenações criminais e inelegibilidades
Geraldo Brindeiro
A Constituição federal dispõe sobre hipóteses de inelegibilidades no seu próprio texto e determina que lei complementar estabeleça outros casos de inelegibilidades para proteger “a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato”, e ainda para garantir a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta (artigo 14, § 9.º). E a Lei Complementar n.º 64/90, com as alterações da LC n.º 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) estabelece no seu artigo 1.º, inciso I, alínea e, a inelegibilidade dos “que forem condenados, em decisão (...) proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 1) contra (...) a administração pública e o patrimônio público (...)”. As condenações criminais, portanto, pela prática dos mencionados crimes, confirmadas pelos tribunais de apelação, devem conduzir, em conformidade com a Constituição e a lei, à inelegibilidade dos réus para qualquer cargo eletivo, sobretudo para os cargos nos quais praticaram os crimes.
A jurisprudência do colendo Supremo Tribunal Federal (STF) não somente reconhece a constitucionalidade da referida norma da Lei da Ficha Limpa, especialmente à luz do disposto no artigo 14, § 9.º da Constituição (vide ADI 4578-DF, relator o ministro Luiz Fux), mas também, mesmo em relação à presunção de inocência para fins criminais, autoriza a execução provisória do acórdão penal condenatório. Nesse sentido foi o acórdão do STF de que foi relator o saudoso ministro Teori Zavascki, em cuja ementa se lê, verbis: “(...) 1) A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5.º, inciso LVII da Constituição federal. 2) Habeas corpus denegado”.
A ministra Cármen Lúcia, no seu voto, asseverou: “(...) o quadro fático já está posto (...) se em duas instâncias já assim foi considerado, nos termos inclusive das normas internacionais de Direitos Humanos”. O ministro Luiz Fux ponderou que, de acordo com a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, toda pessoa acusada de um ato delituoso “tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada”. O ministro Edson Fachin observou que os julgadores de segunda instância são “soberanos na avaliação dos fatos”. O ministro Gilmar Mendes considerou que “a condenação (...) já foi estabelecida pelas instâncias soberanas para análise dos fatos”. E o ministro Roberto Barroso enfatizou que “houve demonstração segura da responsabilidade penal do réu e finalizou-se a apreciação de fatos e provas”. O eminente ministro Dias Toffoli também acompanhou o voto do ministro Teori Zavascki, tendo o acórdão sido proferido por maioria de 7 votos a 4, vencida a eminente ministra Rosa Weber e os eminentes ministros Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.
É que, em síntese, as questões de fato – relativas às provas da prática dos crimes – não são reexaminadas em recursos especiais ou extraordinários perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF. Estes decidem nesses recursos apenas questões de direito e sua correta exegese. Assim, como a presunção de inocência se refere obviamente aos fatos – e não às normas –, comprovada a materialidade e autoria dos crimes, tendo o réu sido condenado pela sua prática após minucioso exame dos fatos e das provas nos julgamentos em primeira instância e no tribunal de apelação, a execução da pena pode ser imediatamente iniciada. Evidentemente, observado o duplo grau de jurisdição e condenado o réu, não mais se pode falar de dúvida razoável quanto aos fatos – reasonable doubt,
para usar a expressão do Direito Constitucional americano. A Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu doutrina segundo a qual toda pessoa é presumida inocente até que sua culpa seja provada além de dúvida razoável (every man is presumed to be innocent until his guilt is proved beyond reasonable doubt)– vide, e.g., Coffin, et al. v. United States 156 U.S. 432 (1895); In re Winship, 397 U.S. 358 (1970); e Taylor v. Kentucky, 436 U.S. 478 (1978). Na verdade, observa-se que no Direito Comparado – em países como Estados Unidos, Inglaterra e França – se procede-se à execução das sentenças e dos acórdãos condenatórios independentemente de referendum das Supremas Cortes. O que se veda no Direito Constitucional e nas declarações de direitos é a presunção de culpa, devendo ser provada a culpabilidade dos acusados em processos públicos nos quais se assegurem todas as garantias do contraditório, da ampla defesa e do due process of law. Como observa o constitucionalista professor Laurence Tribe, da Universidade Harvard, a expressão presumption of innocence não existe na Constituição americana, mas decorre da cláusula do due process of law na 14.ª Emenda, reproduzida na Constituição brasileira no artigo 5.º, inciso LIV; e representa o postulado básico de dignidade e igualdade contrário à presunção de culpa (assumption of guilt).
Finalmente, a Constituição federal estabelece que o presidente da República deve ser afastado do cargo se recebida denúncia contra ele pela prática de crimes comuns no exercício de suas funções (artigo 86, § 1.º, inciso I, c/c o § 4.º). Assim, eventual condenação pela prática de crimes contra a administração pública e o patrimônio público no exercício das funções presidenciais em mandatos anteriores reforça a tese da inelegibilidade configurada, se for o caso, nos termos da Constituição e da Lei da Ficha Limpa. E a Constituição deve ser cumprida.
(...)
DOUTOR EM DIREITO POR YALE, PROFESSOR DA UNB, FOI PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA (1995-2003)