O globo, n. 30973, 27/11/2017. País, p. 12

 

PEC que proíbe qualquer tipo de aborto

27/11/2017

 

 

Um grande retrocesso

O avanço, na Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC ) 181, que proíbe todos os tipos de aborto no país, mesmo os previstos em lei, representa um retrocesso para a sociedade. Modificações num projeto que tinha como objetivo estender o prazo de licença-maternidade para mães de prematuros acabaram deslocando o centro do debate, gerando uma série de protestos na Casa e nas ruas. O cerne da questão é o fato de o texto estabelecer que a vida começa já no momento da concepção. O que, na prática, significa criminalizar todo e qualquer processo de aborto.

Pelo artigo 128 do Código Penal, o aborto é permitido quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário), ou quando a gravidez é decorrente de estupro — neste caso depende do consentimento da gestante ou de seu representante legal. Desde 2012, a partir de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é autorizado também nos casos em que o feto é diagnosticado com anencefalia.

A polêmica sobre o assunto ganhou tonalidades mais fortes no dia 8 de novembro, quando uma comissão especial da Câmara aprovou, por 18 votos (todos de parlamentares homens) a um, o texto do relator da PEC, deputado Jorge Mudalen (DEM-SP). A decisão contou com apoio maciço da bancada evangélica, que detém a maioria das 33 cadeiras da comissão. A deputada Erika Kokay (PT-DF), única a votar contra a PEC que já está sendo chamada de Cavalo de Troia, disse que o texto promove uma fraude, à medida que se aproveita de um projeto consensual para impor a retirada de direitos das mulheres.

As manobras para aprovar a proposta na Câmara têm causado indignação em movimentos de mulheres, que enxergam as mudanças como um inaceitável recuo na legislação brasileira sobre aborto — que, aliás, é de 1941. No dia 13, houve manifestações no Rio, em São Paulo e outras 28 cidades do país contra a PEC 181.

O próprio governo tem emitido sinais que vão contra a proposta engendrada na Câmara. Num evento internacional, no Chile, no mesmo dia em que o texto foi aprovado na comissão, o Itamaraty destacava o fato de o SUS prestar atendimento a mulheres nos casos de aborto previstos em lei. A Chefe da Divisão de Temas Sociais do Itamaraty, Marise Nogueira, alertou para o fato de que as mudanças contrariam compromissos internacionais assumidos pelo país.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também parece caminhar na contramão da PEC. Ele tem dito que o projeto não deverá prosperar na Casa se insistir em criminalizar o aborto em casos de violência contra a mulher.

Em meio ao calor do debate, é preciso restabelecer o bom senso. O aborto deve ser visto como uma questão de saúde pública. Relatório da ONU mostra que a interrupção da gravidez em condições de risco ocupa o terceiro lugar entre as causas de morte materna em todo o mundo. No Brasil, estima-se que a cada dois dias uma mulher morre vítima de aborto clandestino, por falta de cuidados essenciais. Não se pode fechar os olhos para essa situação. A hipocrisia pode até mascarar, mas não resolve o problema.

 

'Não mate, dê para mim'

Márcio Pacheco

27/11/2017

 

 

A ideia de um estado que protege as pessoas integralmente começa com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que no seu artigo 3° defende: todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Aqui nasce um questionamento indesejável, a pergunta que nós empurramos literalmente com a barriga: a partir de que momento um ser humano “merece” ser protegido? Quando começa a vida? Um debate jurídico, bioético, social e urgente.

A recente discussão em torno da PEC 181 reacendeu o debate sobre o aborto no Brasil. A PEC não tratava inicialmente sobre o estado defender a vida desde a concepção, mas sobre o benefício de licença maternidade. A inclusão deste ponto polêmico no texto foi uma ação da bancada cristã. Alguns grupos criticam a proposta dizendo que a mulher será penalizada. A visão concepcionista fere a Constituição?

O Código Penal Brasileiro prevê excludentes de punibilidade para o aborto em três casos específicos: gravidez por estupro, risco de morte da mãe e gestação de crianças com má formação cerebral. Quem defende o “aborto legal” usa fatos do século passado. O perigo da gestante, que é o risco de morte da mãe, está contextualizado na década de 1940, quando mulheres morriam por infecção no parto. Hoje elas morrem no aborto. Já a interrupção da gravidez por anencefalia do feto parece arbitrário. Quem pode afirmar que num futuro próximo a medicina não possa garantir a vida destes seres humanos com total dignidade? Há 40 anos era baixa a expectativa de vida das pessoas com síndrome de Down.

O tema mais delicado é o estupro. A culpa não é da mulher. Mas também não é da criança. E o estado deve proteger a vida de ambos. É aqui que a discussão sobe o tom. Na França, país onde o aborto é legal desde 1975, existem casas de apoio à vida. Mulheres que não querem abortar fazem pré-natal e recebem amparo social e psicológico. Madre Teresa de Calcutá dizia: “Se não quer, não mate, dê para mim”. Pode parecer um contrassenso obrigar uma criança a crescer num ambiente onde não a querem, mas num ambiente onde ela será acolhida não é um contrassenso. Abortar é desistir. É quando alguém abre mão da vida de outro alguém. Desistir de ser mãe é um direito, matar não.

É verdade que a mulher é dona do próprio corpo e que são cruéis os dados do Brasil sobre abortos em clínicas clandestinas. Mas no meio do caminho tem um feto. O feto é um fato. As consequências são ruins para as mulheres, porém são piores para a criança, o ser intruso, indesejada pelo estado, pelo pai e pela mãe. O nascituro não é menos importante em detrimento de sua mãe. Estatísticas mostram que a interdição legal não impede as mulheres de fazerem abortos. Mas políticas públicas podem impedir. A negligência nos faz cúmplices das mortes. O Brasil não precisa legalizar o aborto, precisa proteger a vida da mulher e das crianças.