O globo, n. 30768, 02/11/2017. Rio, p. 6

 

O contra-ataque do estado

02/11/2017

 

 

Pezão vai interpelar ministro da Justiça no STF por acusações de corrupção na PM

-RIO E BRASÍLIA- Um dia após ser acusado pelo ministro da Justiça, Torquato Jardim, de ser conivente com a corrupção na Polícia Militar, o governo estadual partiu ontem para o contra-ataque: anunciou que vai interpelá-lo judicialmente por meio de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), conforme antecipou o colunista do GLOBO Ancelmo Gois em seu blog. A decisão foi tomada durante uma reunião no Palácio Guanabara, da qual participaram o governador Luiz Fernando Pezão, o secretário de Segurança, Roberto Sá, o comandante-geral da PM, coronel Wolney Dias, e oficiais que estão à frente de 44 batalhões. O estado subiu o tom, e, de Brasília, veio uma resposta igualmente dura. O vice-líder do governo na Câmara dos Deputados, Darcísio Perondi (PMDBRS), saiu em defesa de Torquato afirmando que “o Rio é quase um caso perdido”. Um sinal de que o Planalto não está disposto a pôr panos quentes na crise instalada pela metralhadora giratória do ministro da Justiça.

—Ele( Torquato) foi sincero. Às vezes, a sinceridade machuca. O Rio é quase um caso perdido — disse Perondi.

Após participar de um evento em Brasília com a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, e o ministro da Educação, Mendonça Filho, Torquato não manifestou preocupação com a iniciativa do governo estadual de questioná-lo na Justiça.

— Essas reações são normais — disse o ministro, que não quis fazer novos comentários sobre a segurança pública do Rio: — Já falei o que tinha que falar.

DECLARAÇÕES POLÊMICAS

A crise na relação entre os governos estadual e federal foi detonada na terça-feira, quando Torquato, em entrevistas ao site UOL e à rádio Bandnews, destacou que “o comando da PM decorre de acerto com deputado estadual e o crime organizado”, entre outras acusações. Ele também disse suspeitar que o assassinato, na semana passada, do coronel Luiz Gustavo Teixeira, do 3º BPM (Méier) foi uma execução, apesar de investigadores tratarem o caso como homicídio praticado durante uma tentativa de assalto. No mesmo dia, o ministro reafirmou as declarações ao GLOBO e acrescentou: “Se estou errado, que me provem”.

Ainda na terça-feira, Pezão, Sá e Dias repudiaram as acusações de Torquato, que também havia dito que “comandantes de batalhões são sócios do crime organizado no Rio”. Mas o desconforto que as declarações do ministro causaram em meio à tropa da PM levou o estado a adotar, ontem, uma postura mais radical. A reunião no Palácio Guanabara foi convocada às pressas pelo Estado-Maior da corporação. Em seguida, a Procuradoria-Geral do Estado do Rio apresentou ao STF pedido de interpelação motivado por “crime contra a honra”.

— O governador prestou solidariedade a cada componente da Polícia Militar — frisou Sá ao fim do encontro.

Após o secretário afirmar que a parceria com o governo federal no combate à violência continua, o comandante da PM mostrou sua indignação:

— Acho um absurdo (Torquato) levantar suspeitas sobre o coronel Teixeira, que dedicou sua carreira e tinha bons serviços prestados. A família não merece que sua imagem seja arranhada. Também queria dizer que não comando uma horda, eu comando uma legião de heróis.

GUERRA TAMBÉM NA CÂMARA

Além de Darcísio Perondi, outros dois integrantes da Câmara dos Deputados reforçaram, de lados opostos, o clima beligerante. Alessandro Molon (RedeRJ) pediu ao Ministério Público do Rio para investigar a suposta existência de uma relação entre comandantes de batalhões e o crime organizado, apontada pelas “declarações verossímeis” de Torquato. Já o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ) abriu fogo contra o ministro e o Palácio do Planalto.

— Ele pode ter atrapalhado a força-tarefa porque tudo que falou estaria sendo investigado, tem um trabalho que não é só do Ministério da Justiça. Pode ter jogado tudo fora. Se há informação de que o governador não manda mais, que o secretário não manda mais, e que os bandidos estão comandando os batalhões, é preciso tomar uma providência. Ou o governo não sabe o que está falando ou vai ter que intervir — criticou Maia, acrescentando que o presidente Michel Temer não tem condições fiscais ou políticas para fazê-lo.

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Governo escolheu ser a pedra, e não a vidraça

Ricardo Ismael

02/11/2017

 

 

Ainda repercutem as declarações do ministro Torquato Jardim, com críticas e graves denúncias à política de segurança pública do Rio de Janeiro. Não se trata de manifestação impensada. Existiu a intenção de colocar a discussão na agenda, de uma forma que pudesse escolher ser a pedra, e não a vidraça.

Alguns aspectos de natureza político-administrativa podem ser destacados. Tudo indica que temos mais do que uma crise na cooperação federativa entre o governo federal e as autoridades estaduais responsáveis pela área de segurança pública. O ministro da Justiça aponta para uma inflexão nesta relação. Ao que parece, questiona o papel passivo da União, que tem colocado rotineiramente as Forças Armadas à disposição do governo estadual, embora a situação não mostre sinais de melhora, e seja flagrante a inadequação das tropas do Exército nas atividades definidas nessas operações no Rio.

O governo de Michel Temer continuará apoiando o estado, inclusive enviando militares ou parte do efetivo da Guarda Nacional. Entretanto, o ministro da Justiça parece não antever, no curto prazo, uma evolução favorável nas condições atuais das comunidades cariocas com presença do crime organizado. Seu diagnóstico é que existem problemas estruturais no âmbito de atuação do poder público estadual, que não estão sendo resolvidos. A permanência dos problemas deve, nesta visão, ser debitada na conta do governo estadual.

Algum leitor atento poderia perguntar: mas como é possível este descompasso, se temos o PMDB no plano no federal e o PMDB no plano estadual? De fato, em outros tempos, as diferenças entre aliados partidários seriam tratadas com discrição nos gabinetes de Brasília ou no Palácio Guanabara, especialmente se houvessem sérios problemas a enfrentar. Neste momento, porém, prevaleceu o objetivo de preservação do governo Temer, numa área mal avaliada pela população, e que será decisiva nas próximas eleições nacionais.

O governador Luiz Fernando Pezão tem tido pouca ou reduzida capacidade de reação às críticas, que se ampliaram na medida em que avançou o colapso das finanças públicas do estado, comprometendo os salários dos servidores, os serviços públicos e a economia fluminense. Nesse episódio, o governador reagiu de imediato, por meio de nota à imprensa, repudiando a iniciativa do ministro da Justiça. Entretanto, parece ter sido surpreendido, e, por isso mesmo, ele não consegue sair de uma posição defensiva.

A sociedade acompanha tudo com atenção. Seria um equívoco ignorar e naturalizar a censura. Mas também seria um erro não perceber que se trata de um problema nacional, e que não cabe jogar no colo dos estados.