O globo, n. 30775, 09/11/2017. Opinião, p. 17

 

Direitos humanos: um balanço

Flávia Piovesan

09/11/2017

 

 

Em 25 de maio de 2016, neste mesmo espaço, afirmei ter sido surpreendida com o desafio de assumir a Secretaria Especial de Direitos Humanos. Naquela oportunidade, enfatizei: “Aceitei o convite com a profunda convicção do dever de contribuir para com a causa dos direitos humanos, no sentido de evitar retrocessos e fomentar avanços. A minha devoção é à causa. O meu partido chama-se direitos humanos”. (“Apelo ao pluralismo II”, O GLOBO, 26/05/2016).

No último 1º de novembro, foi publicada a minha exoneração do cargo, a pedido, no sentido de viabilizar uma adequada transição para o exercício do mandato junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a iniciar em janeiro de 2018.

Neste período, em tempos turbulentos, acirrados e acentuadamente polarizados, a luta por direitos foi marcada por luzes e sombras; avanços e retrocessos; tensões e enfrentamentos. Sob o mantra dos direitos humanos como uma política de Estado — essencial à democracia e ao estado de direito —, a defesa de direitos foi orientada pelos parâmetros constitucionais e internacionais, com destaque à Constituição e instrumentos protetivos internacionais.

Em 14 de dezembro, foi lançado o Pacto Federativo para a Erradicação do Trabalho Escravo, com a adesão de 23 estados no compromisso de criar ou fortalecer as Comissões Estaduais de Combate ao Trabalho Escravo (Coetraes), bem como elaborar planos estaduais para a sua prevenção. Em 19 de outubro, em reunião com 22 Coetraes, por unanimidade, foi ressaltada a importância da “lista suja” como eficaz instrumento de prevenção ao trabalho escravo e a relevância de fortalecer ações de fiscalização. Em 30 de outubro, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (a qual tive a honra de presidir) lançou publicação sobre o impacto da emblemática sentença “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde”, proferida pela Corte Interamericana, em caso de trabalho escravo envolvendo 128 trabalhadores em fazenda no Pará. A histórica sentença associa o trabalho escravo a uma situação de discriminação estrutural histórica, ressaltando que a proibição absoluta e universal da escravidão é norma imperativa do Direito Internacional. Na mesma data, na Enap, em oficina com agentes estatais, foi lançada a publicação “Implementando os princípios orientadores sobre empresas e direitos humanos da ONU”, em parceria com a FGV/SP, como contribuição a uma temática contemporânea, que invoca novos paradigmas baseados nos princípios da ONU de 2011 e seus três pilares: proteger (apontando à responsabilidade dos Estados em evitar abusos de atores não estatais); respeitar (apontando à responsabilidade das empresas relativamente à sua cadeia produtiva e entorno, com ênfase na devida diligência para prevenir os riscos e mitigar os impactos negativos da atividade empresarial); e remediar (apontando à necessidade de estabelecer mecanismos às vítimas em caso de violação).

No mesmo sentido de impulsionar e capilarizar políticas públicas de direitos humanos, considerando a dimensão continental do Estado brasileiro, em 12 de setembro, foi lançado o Pacto Federativo para a Prevenção e Combate à Tortura, visando à criação e ao fortalecimento de comitês e mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura em todo o país. Está ainda sendo ultimado o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência LGBTfóbica, no intuito de articular ações no combate à violência contra a população LGBT, em nome do direito de ser e do respeito à diversidade sexual, com destaque à campanha nacional “Deixe seu preconceito de lado: respeite as diferenças”, lançada em junho.

Na busca de estimular a cultura dos direitos humanos, dentre tantas outras ações, cabe menção ao 1º Concurso Nacional de Sentenças em Direitos Humanos (em parceria com o CNJ); ao termo de cooperação com o Colégio de Defensores Públicos para a criação de Núcleos de Direitos Humanos e a inclusão de direitos humanos nos concursos de ingresso — iniciativa também adotada junto ao Conselho Nacional do Ministério Público e à magistratura. Em novembro de 2016, foi lançado o Pacto Universitário pelos Direitos Humanos, em parceria com o MEC, para impulsionar a educação em direitos humanos no ensino, pesquisa, extensão, gestão e convivência universitária, contando hoje com mais de 320 instituições, bem como com recente edital da Capes de fomento à pesquisa.

Com profunda gratidão, despeço-me da secretaria com a tranquilidade de ter feito o meu melhor, atuando com integridade, coerência e absoluto compromisso com a causa. Para Martha Nussbaum, “imaginar a dor de uma pessoa e perguntar sobre o seu significado é um poderoso modo de compreender a realidade humana e adquirir uma motivação para transformá-la”. Eis o desafio emancipatório dos direitos humanos: acolher a dor humana e permitir o resgate da humanidade, da liberdade, da igualdade e da dignidade inerente a toda e qualquer pessoa, com seu valor único e infinito.

*Flávia Piovesan é professora de Direito da PUC/SP e foi secretária Especial de Direitos Humanos