O globo, n. 30755, 09/11/2017. Economia, p. 20

 

Portaria do trabalho escravo foi editada ignorando parecer jurídico

Francisco Leali

09/11/2017

 

 

Ministério mudou regras com base em pedidos do setor imobiliário

-BRASÍLIA- A portaria que mudou as regras sobre classificação de trabalho escravo foi editada pelo Ministério do Trabalho ignorando recomendação de parecer jurídico da própria pasta. As alterações levaram só dois meses para serem gestadas no governo e foram produzidas a partir de um pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) ao Ministério do Planejamento, que não tem relação direta com o tema. A portaria acabou sendo suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), mas não se tinha conhecimento sobre como o processo tramitou no governo.

Em 10 de agosto, a Abrainc enviou ao ministro do Planejamento, Dyogo de Oliveira, ofício pedindo mudanças nas normas do governo. A entidade alegou que o setor tem grande impacto na economia brasileira e sofre com ações de fiscais do trabalho que confundem “ambiente de trabalho com condições precárias de higiene e saúde” com o trabalho análogo ao de escravo. A Abrainc já havia recorrido ao STF em 2014 para impedir a divulgação da lista suja, com nome de empresas flagradas em fiscalizações contra o trabalho escravo.

DE 7 PEDIDOS, 4 FORAM ATENDIDOS

A Abrainc fez sete pedidos, sendo que quatro foram contemplados pela portaria editada pelo Ministério do Trabalho. Um deles é a definição do conceito de “condição degradante” e a transferência para o ministro da decisão de incluir empresas na lista suja.

O pedido original da Abrainc foi analisado pela Secretaria de Planejamento e Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento, que emitiu parecer concordando com a possibilidade de alterar as regras. “Em que pese a Lei 10.803 trazer as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo, para fins penais e criminais, esta condição é frequentemente confundida com o ambiente de trabalho em condições precárias de higiene e saúde, e esse desentendimento pode levar empresas a serem incluídas, a princípio indevidamente, no Cadastro de Empregadores. Nesse contexto, entidades do setor produtivo, como a Abrainc, defendem a necessidade de que a legislação deixe mais claro o que são, particularmente, ‘condições degradantes de trabalho,’ a fim de orientar as ações de fiscalização, evitando margem excessiva de discricionariedade na interpretação da lei”, diz o parecer, obtido via Lei de Acesso à Informação. O texto conclui, porém, que o assunto era da competência do Ministério do Trabalho, para onde o pedido foi remetido no início de setembro.

No dia 11 de outubro, a consultoria jurídica do Ministério do Trabalho deu seu aval para a edição da nova portaria. Mas, em três momentos no texto, o consultor-geral substituto de Assuntos de Direito Trabalhista, Francisco Moacir Barros, destacou que era preciso ouvir o setor envolvido diretamente na fiscalização de trabalho escravo antes de a portaria ser editada. Caso decidisse ignorar esse setor do ministério, a consultoria recomendava que fosse, então, produzida uma nota técnica por assessores do gabinete do ministro para justificar a edição da portaria. O processo do ministério não registra nenhuma manifestação técnica da assessoria do gabinete.

A portaria foi publicada em 16 de outubro no Diário Oficial sem a consulta prévia à área técnica.

O Ministério do Trabalho não comentou. Sobre ter procurado o Planejamento para tratar do tema trabalho escravo, a Abrainc disse, em nota, manter contato com todos os ministérios. Afirmou ainda que defende o trabalho “digno e adequado”. E entende que uma regulação que distinga as infrações trabalhistas do trabalho análogo ao escravo é fundamental, ao trazer mais segurança aos investimentos de que o país necessita.

Ontem, especialistas em direitos humanos da ONU pediram ao governo brasileiro que adote ações urgentes para evitar o enfraquecimento da luta contra a escravidão moderna.