O globo, n. 30804, 08/12/2017. País, p. 3

 

‘Poderosa organização’

Julilana Castro

08/12/2017

 

 

Na primeira denúncia da Lava-Jato no Rio contra políticos com foro privilegiado, o Ministério Público Federal (MPF) acusou o presidente licenciado da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Jorge Picciani, de receber quase R$ 80 milhões em propinas da Odebrecht e da Fetranspor e de participar de “uma poderosa organização criminosa” fincada no PMDB fluminense. Foram denunciados ainda o ex-presidente da Assembleia Paulo Melo, o ex-líder do governo Edson Albertassi, também do PMDB, e outras 16 pessoas. O MPF não descarta que o trio tenha dividido os recursos ilícitos com outros deputados para garantir os benefícios às empresas, o que pode gerar novas operações. Os três deputados foram denunciados pelos crimes de corrupção passiva e pertencimento à organização criminosa. Picciani é acusado também de lavagem de dinheiro. No texto, o MPF já adianta que o esquema de corrupção envolvendo deputados estaduais não se limitou ao pagamento de propinas pela Odebrecht e a Fetranspor, embora a denúncia trate dos repasses feitos apenas pelas duas empresas.

“CAIXINHA” DE R$ 250 MILHÕES

Mais do que as palavras de delatores, o MPF indicou farta produção de provas para consolidar a denúncia apresentada ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2). Somente no caso da Fetranspor, arquivos recuperados em um pendrive entregue por delatores permitiu identificar que a “caixinha” para o pagamento de propinas a políticos do Rio totalizou R$ 250 milhões entre janeiro de 2013 a fevereiro de 2016. Além disso, foram identificadas contas paralelas, senhas para a entrega de propina, codinomes e endereços de entrega, e obtidas gravações telefônicas e troca de e-mails. — Temos elementos para concluir que não só a Fetranspor e a Odebrecht pagaram propinas para esses deputados (Picciani, Paulo Melo e Albertassi). Há indícios de que eles se beneficiavam em outros esquemas criminosos e vamos apurar isso — afirmou o procurador Carlos Aguiar, completando: — Não descartamos também que o dinheiro da propina que eles receberam, seja pela Fetranspor ou outros segmentos em apuração, tenha sido compartilhado entre alguns de seus pares. Isso ainda é uma etapa sigilosa, mas é uma frente que estamos tratando. Infelizmente, hoje não posso afirmar que a corrupção dentro da Alerj tenha ficado circunscrita aos três deputados afastados. Nosso desafio é identificar os outros personagens e sufocar financeiramente a organização criminosa. A denúncia aponta que Picciani recebeu da Odebrecht R$ 11,1 milhões entre 2008 e 2014. A alcunha dele era “Grego” no sistema da empreiteira que contabilizava as propinas. Paulo Melo, ou Maria Mole nas anotações internas da Odebrecht, recebeu R$ R$ 1,4 milhão de 2010 a 2014, segundo o MPF. Como prova contra Picciani, os procuradores reproduzem um e-mail enviado ao peemedebista em que Benedicto Junior, executivo da Odebrecht, pede a alteração de um projeto de lei de interesse da empresa. No fim, as alterações solicitadas foram feitas e a lei entrou em vigor da forma como a Odebrecht queria. Com relação a Paulo Melo, parte das propinas foi paga por meio de doação eleitoral oficial. O MPF coloca na denúncia a troca de emails, entre uma funcionária do deputado e Benedicto Junior, relativa às doações, feitas por outras empresas a mando da Odebrecht.

EMPRESÁRIOS TAMBÉM SÃO DENUNCIADOS

Da Fetranspor, o MPF aponta que Picciani recebeu um total de R$ 68,6 milhões entre julho de 2010 e março de 2017. Já Paulo Melo recebeu R$ 54 milhões entre agosto de 2010 e fevereiro de 2015. Desse total, pelo menos R$ 15,6 milhões foram repassados pelo próprio ex-governador Sérgio Cabral. Entre os denunciados estão Felipe Picciani, que comandava a Agrobilara, empresa da família que atua no ramo agropecuário e que, segundo os procuradores, era usada para lavagem de dinheiro. O MPF denunciou por corrupção ativa os empresários Jacob Barata Filho, José Carlos Lavouras, Lélis Teixeira e Marcelo Traça, ligados a empresas de ônibus do Rio, executivos das empreiteiras Odebrecht, Andrade Gutierrez e Carioca Engenharia, e operadores financeiros do esquema. Traça tornou-se delator e seu relato foi decisivo para que os procuradores pudessem fechar o ciclo da propina. No acordo de colaboração, ele se compromete a pagar R$ 20 milhões, parceladamente. A denúncia contra o trio só vira ação penal quando for aceita pela 1ª seção especializada, integrada por seis desembargadores. Esse foi o grupo que votou pelo restabelecimento da prisão dos três, após a Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) libertá-los. Investigados na Operação Cadeia Velha, os três peemedebistas estão presos há três semanas na Cadeia Pública de Benfica, a mesma onde está o ex-governador Sérgio Cabral, condenado por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A denúncia do MPF aponta que Picciani e Albertassi receberam propina da Fetranspor até março deste ano, quando Cabral já estava preso e um braço da organização fora golpeado. As defesas de Picciani e Paulo Melo não comentaram a denúncia. O advogado Márcio Delambert, que defende Albertassi disse que “a denúncia fez um juízo equivocado da atuação parlamentar do deputado, com base na palavra isolada de um delator que é réu confesso”. A Fetranspor disse desconhecer o teor de uma delação que refere-se a fatos supostamente ocorridos antes da posse da nova administração e que vem desenvolvendo uma reestruturação, que incluiu a destituição do antigo Conselho e o estabelecimento de uma política de compliance. A defesa de Jacob Barata Filho alegou não haver evidência de distribuição ou recebimento de dinheiro ilícito em prol de qualquer agente público por parte do empresário. E a defesa de José Carlos Lavouras disse que delações visam a premiar criminosos confessos, que ficam impunes. “Por isso, delatores reiteradamente faltam com a verdade e induzem autoridades em erro”. (Colaboraram Carolina Morand, Chico Otavio, Daniel Biasetto e Maurício Ferro)

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MPF: dinheiro do Riocard ressarcia as propinas pagas

Luiz Ernesto Magalhães

08/12/2017

 

 

Esquema contava com a participação da Riopar, que faz a gestão da bilhetagem eletrônica

A Riopar Participações, empresa responsável por controlar 15 milhões de viagens pagas diariamente com o Riocard no transporte público no estado — incluindo ônibus, metrô, trens, barcas e VLT — serviu como uma espécie de “câmara de compensação” de propinas que os empresários de ônibus pagavam para os deputados Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi, entre outros políticos, e conselheiros do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Ligada à Fetranspor, a Riopar era responsável por repor o dinheiro que 26 empresas de ônibus pagavam para políticos segundo a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal. O esquema funcionava da seguinte forma. Ao prestar contas às concessionárias de transportes da operação do Riocard, a Riopar depositava na conta das empresas envolvidas no esquema valores maiores do que teriam direito. O repasse tinha o objetivo de ressarcir as empresas envolvidas no esquema, que pagavam as propinas em dinheiro. Isso porque, apesar da implantação da bilhetagem eletrônica, pelo menos 40% das viagens em ônibus ainda são em espécie. Esse dinheiro, por sua vez, era recolhido às garagens no fim do dia e redistribuído em propinas.

MAIORES VIAÇÕES DO ESTADO

Segundo a denúncia, os recursos tinham origem em duas fontes. Uma delas era a comissão de 3,5% que as concessionárias pagam a Riopar para gerenciar a bilhetagem eletrônica. A segunda, eram créditos pré-pagos não usados pelos usuários do transporte público do Rio. Até agosto, três empresários que aparecem na denúncia do MP integravam a direção da Riopar: Jacob Barata Filho, que presidia o conselho de administração; José Carlos Lavouras e Lélis Marcos Teixeira, ex-presidente do Rio Ônibus e da Fetranspor), além de Marcelo Traça, um dos delatores do esquema. Entre as empresas participantes do esquema estão algumas das maiores do estado. A maior contribuição vinha da Viação Flores, controlada por José Carlos Lavouras. Com base na Baixada Fluminense, a empresa pagou R$ 30,2 milhões em cinco anos. A Rio Ita, que já operou as barcas e administra cerca de 50 linhas intermunicipais, pagou R$ 21,5 milhões. Algumas integrantes do esquema fazem parte dos consórcios que venceram licitações da prefeitura do Rio para explorar linhas de ônibus. Entre elas, Viação Acari (R$ 12,4 milhões), América (R$ 910 mil), Redentor (R$ 6,4 milhões), Rubanil (R$ 910 mil) e Madureira-Candelária (R$ 728 mil).

RIOPAR: “SISTEMA É INVIOLÁVEL”

Em nota, a Riopar negou participação no esquema. “O sistema de bilhetagem eletrônica é inviolável e tem sido, desde a sua implementação, objeto de auditorias permanentes por parte do poder concedente, além daquelas realizadas internamente por instituições de reconhecida reputação”. Já a Fetranspor afirmou desconhecer a participação de empresas associadas em qualquer irregularidade e que “está à disposição das autoridades para prestar os esclarecimentos necessários às investigações em curso.’’ Em 2009, um projeto proposto pelo ex-governador Sérgio Cabral abriu caminho para o uso do Riocard como fonte de propina. A lei que criou o Bilhete Único incluiu um dispositivo no qual previa que os créditos adquiridos por usuários teriam validade de apenas um ano, a contar da aquisição. Não se sabe exatamente quanto a Riopar arrecadou. Uma das poucas informações veio de uma auditoria do TCE no Bilhete Único Intermunicipal. Neste sistema, a empresa arrecadou R$ 90 milhões em cinco anos.