Correio braziliense, n. 20045, 08/04/2018. Política, p. 2

 

O primeiro dia de Lula no cárcere

Leonardo Cavalcanti, Renato Souza e Felipe Sefrin

08/04/2018

 

 

UM PAÍS SOB TENSÃO » Preso em Curitiba, ex-presidente não poderá receber á visita de políticos, apenas de advogados e da família. Ele decidiu se render à Polícia Federal depois da recusa de um novo habeas corpus. Mas a novela só terminou no início da noite

Curitiba, Brasília e São Bernardo do Campo (SP) — Um misto de estratégia eleitoral, improviso na negociação e emoção política marcaram o dia em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula Silva se entregou à Polícia Federal. Entre o vai não vai do petista, os próprios militantes barraram, ao longo da tarde, ainda em São Bernardo do Campo (SP), a saída do carro que o levaria ao aeroporto. Se Lula tinha cumprido o plano de transformar a prisão em um ato heroico — primeiro, se recusando a se entregar no prazo estabelecido pelo juiz Sérgio Moro e, depois, fazendo um discurso forte para os partidários —, a saída de São Paulo se transformou numa novela de roteiro ruim, que terminou às 18h42, quando Lula deixou o sindicato a pé e entrou em um carro da PF que o esperava.

Como o Correio mostrou ainda na tarde da última quinta-feira, a estratégia de Lula era segurar ao máximo a rendição e documentar, em vídeos e fotos, todos os passos antes da prisão, que só ocorreria depois do prazo estabelecido pelo juiz paranaense, descumprido às 17h da quinta-feira.

Às 11h de ontem, frustrou-se a última cartada da defesa: um novo pedido de habeas corpus foi recusado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin. Caso ele resistisse a ir para a cadeia, poderia ter a prisão preventiva decretada, o que tornaria mais difícil a obtenção de eventuais recursos que possam  libertá-lo., ele 

Às 12h15, Lula fez o discurso em seguida ao ato religioso em homenagem à mulher, dona Marisa, morta em fevereiro de 2017. A partir dali, o plano era se entregar. Mas os militantes barraram a saída do carro, o que fez com que Lula voltasse ao prédio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

A PF, então, concedeu o prazo de meia hora para que ele se apresentasse às viaturas que estavam estacionadas em uma rua ao lado do prédio onde fica a sede do Sindicato dos Metalúrgicos.

Com a rendição, o petista seguiu no comboio policial até a sede da corporação, em um trajeto de quase uma hora. De lá, foi levado pelo helicóptero da Polícia Militar até o Aeroporto de Congonhas, de onde partiu, às 21h, para Curitiba em um avião monomotor.

Em Curitiba, agentes da Polícia Federal foram convocados para aguardar a chegada do ex-presidente. O avião pousou às 22h no Aeroporto Afonso Pena. Dali, ele  seguiu de helicóptero para o Diretoria da Polícia Federal, aonde chegou às 22h30.

Manifestantes favoráveis e contrários ao ex-presidente aguardavam  na rua diante do edifício. Os que defendem a prisão de Lula soltaram fogos de artifício.

Uma ordem judicial determinava que os manifestantes ficassem a mais de 100m do portão do edifício. Antes que se iniciassem as conversas para o cumprimento da ordem, porém, a Polícia Federal lançou oito bombas de efeito moral e spray de pimenta. Algumas crianças, que acompanhavam os pais, foram atingidas pelo gás. Oito delas foram atendidas pelos bombeiros, incluindo quatro crianças — uma delas em estado grave.

O argumentou foi de que o uso de força foi necessário porque a PF apontou risco de o portão fosse derrubado. Mas soldados da própria PM afirmaram que o uso de força pela PF foi excessivo. Antes do uso das bombas de efeito moral, porém, o clima era de relativa tranquilidade.

Horas antes, a 500km dali, em São Bernardo do Campo, dirigentes petistas tentavam convencer os militantes a desobstruir a saída de Lula, quase seis horas depois do discurso do ex-presidente, que falou para uma multidão de militantes durante 55 minutos. Em um trio elétrico, o petista manteve um discurso parecido com o que já pregava nos últimos meses, criticando o juiz Sérgio Moro. “Eles querem que eu não participe como presidente da República em 2018. Eles querem ver o Lula de volta, porque pobre, na cabeça deles, não tem direito. O outro sonho de consumo deles é a fotografia do Lula preso.”

Ao longo do discurso, Lula fez uma série de agradecimentos a aliados, pré-candidatos, sindicalistas. Também aproveitou para celebrar a nova fase política do país, citando os pré-candidatos à Presidência da República Manuela d’Ávila (PC do B) e Guilherme Boulos (Psol). Como Lula deverá ser impedido de participar do pleito de outubro pela  Lei da Ficha Limpa, o PT deve lançar como candidato ao Planalto o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que também estava no palanque.

Candidatura

O PT quer que Lula, mesmo preso, registre oficialmente a candidatura ao Palácio do Planalto. Terá como vice Haddad. O petista insistirá que só não conseguirá concorrer porque é vítima de um golpe. Ele vai se amparar no fato de que a sentença ainda não transitou em julgado e, assim, tem os direitos políticos mantidos.

Tão logo o Superior Tribunal Eleitoral (TSE) negue o registro da candidatura,o que é provável, Lula lançará Haddad como cabeça de chapa. Nessa altura, acredita o ex-presidente, Haddad terá ganhado musculatura eleitoral e terá votos suficientes para ir ao segundo turno com chances de sair vencedor das urnas. “Lula é uma ideia, e não se prende uma ideia”, disse o ex-presidente ontem em São Bernardo do Campo.

Ao fim do discurso, garantiu: “Eu sairei dessa maior, mais forte, mais verdadeiro e inocente, porque eu quero provas de que eles é que cometerem o crime. Eu vou provar minha inocência”.  Após o discurso, Lula deixou o carro de som e foi levado nos braços dos militantes para a área interna da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC ao som dos gritos de “Eu sou o Lula”, motivados por Gleise Hoffmann, senadora e presidente do PT.

Antes do discurso, a missa foi a penúltima ação de um enredo montado estrategicamente na cabeça de Lula antes da prisão. A celebração em homenagem à dona Marisa fez referência direta a um outro ato religioso, este no longínquo abril de 1980. Durante uma greve de metalúrgicos, o Sindicato dos Metalúrgicos sofreu uma intervenção militar, e Lula foi detido por 31 dias no temido Dops (Departamento de Ordem Política e Social) da Polícia Federal. Ao longo do período da detenção, religiosos, como dom Paulo Evaristo Arns e dom Cláudio Hummes, celebraram uma missa na Catedral da Sé, o templo religioso no centro de São Paulo.

Acomodações

Em Curitiba, Lula ocupará uma sala de 15 metros quadrados transformada em cela pela PF, com banheiro, cama e mesa (leia mais na página 4). Só poderá  receber visitas de advogados e familiares.

O cômodo fica no quarto e último andar do prédio da Polícia Federal, localizado no bairro de classe média Jardim Santa Cândida, região central da capital paranaense.
No prédio, estão detidos o ex-ministro petista Antônio Palocci e o ex-diretor da Petrobras Renato Duque. Lula, entretanto, não terá contato com eles, que ocupam as celas da carceragem, no subsolo da Diretoria da PF.

Análise da notícia

Homilia eleitoral

» DENISE ROTHENBURGH

Os petistas compararam o discurso do ex-presidente Lula à carta-testamento do ex-presidente Getúlio Vargas, cuja frase mais conhecida é “saio da vida para entrar na história”. Guardadas as devidas proporções, Lula praticamente sai da campanha de 2018, mas trata de dar ao seu partido os instrumentos para defendê-lo, continuar em frente e não se dispersar em candidaturas de outros partidos (que não as de Manuela D’Ávila ou Guilherme Boulos, presentes ao ato).

Os apelos de não dispersão, contudo, não ficaram apenas na defesa dos mais pobres e dos programas que os governos Lula e Dilma empreenderam. Resvalaram para algo grave. O ex-presidente falou em ocupações de terrenos, em revolução e em enfrentamento político. Também agrediu a imprensa, que, nos tempos do governo de Fernando Collor, era exaltada pelo PT. No fundo, defendeu a continuidade da divisão do país.

Pelo tom de Lula, a ordem agora dentro do PT será a radicalização do discurso, de forma a tratar a defesa do ex-presidente nos processos com a das ações dos governos petistas. Na prática, Lula conclamou os militantes a promover um mix, como se a prisão fosse consequência da defesa dos mais pobres em seus governos.

Com pitadas de “eu tenho um sonho”, de Martin Luther King, que Lula transformou em “eu sonhei”, os petistas têm, graças ao discurso durante o ato ecumênico, 55 minutos de fala do ex-presidente, com elogios a vários pré-candidatos do PT, citações governamentais e ainda referências ao processo que o leva para a cadeia numa rua lotada, com a presença de artistas, representantes da Igreja e dos partidos de esquerda mais afinados ao PT. Melhor, diante do atual momento, impossível.