Título: O desproporcional peso do martelo
Autor: Mariz, renata
Fonte: Correio Braziliense, 11/03/2012, Brasil, p. 10

Uma moça de 30 e poucos anos que furtou pacotes de chiclete em Belo Horizonte, no valor de R$ 98, foi presa e julgada culpada. Rigor bem diferente pesou sobre um homem que sonegou impostos no valor de R$ 3.607. A Justiça entendeu que não houve crime, extinguindo o processo. Ambos os casos estão relacionados em uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) que analisou todas as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2005 a 2009, em que, para anular a ação, a defesa invocou o princípio da insignificância — mecanismo que está prestes a ser incorporado ao Código Penal. O estudo minucioso dos 75 acórdãos mostra que o martelo da última instância judicial do país é mais pesado com quem surrupiou objetos de valor reduzido, condenados em 47,8% das ações. Nessa relação, estão pessoas que tentaram subtrair celular de R$ 35 ou mesmo R$ 5 em espécie. Em contrapartida, apenas 27,6% daqueles que fraudaram o sistema financeiro e a administração pública em até R$ 5 mil foram responsabilizados.

As conclusões do estudo corroboram a impressão da sociedade de que o Judiciário é mais tolerante com sonegadores de impostos e pessoas que se apossaram de dinheiro público. Mas derruba o mito de que quem rouba alimentos, casos que costumam ganhar mais repercussão, acaba condenado pela Suprema Corte. Na verdade, em 83% das ações em que o objeto do furto havia sido gênero alimentício, os ministros do STF reconheceram a insignificância do fato, determinando que não havia ocorrido crime. Embora aparentemente positivo, o dado também demonstra que ações do tipo precisam chegar à instância máxima do Judiciário para haver uma decisão alinhada com a Constituição. Em diversos casos, o réu, quase sempre pobre e muitas vezes sem prestação jurídica adequada, aguarda preso por um veredito justo.

Ao conhecer os resultados da pesquisa da USP, o Ministério da Justiça (MJ) recomendou à comissão de reforma do Código Penal na Câmara dos Deputados que deixe explícito, na legislação brasileira, o princípio da insignificância. "O melhor caminho, no nosso entendimento, é positivar esse princípio, que hoje é uma construção jurisprudencial. Para estabelecer parâmetros, como o valor do objeto furtado, existe menos consenso", destaca Marivaldo Pereira, secretário de Assuntos Legislativos do MJ. Uma preocupação dele é evitar injustiças e até desperdício de recursos. "Em grande parte, os casos têm que chegar aos tribunais superiores e o sujeito fica preso até ser inocentado no final. Quer dizer, a sanção aplicada gera um custo para o Estado muito maior do que o valor do objeto furtado", explica. No caso dos crimes fiscais e contra a administração pública, lembra Marivaldo, a jurisprudência sobre o que pode ser considerado insignificante já está consolidada, dispensando alterações legislativas. Integrante do grupo de pesquisa que desenvolveu o trabalho, Ana Carolina Carlos de Oliveira destaca o papel decisivo do STF na popularização e na afirmação da tese da insignificância. Enquanto em 2004 houve apenas um pedido de reconhecimento desse princípio, em 2009 foram 38, entre os quais 22 obtiveram resposta positiva da Corte. "É notória a maior aplicação por parte do Supremo. Mas verificamos que, nos casos dos crimes contra o patrimônio, essa jurisprudência ainda está em formação. Falta padronização nos argumentos dos ministros. Ora se reconhece a atipicidade de furto de valores de R$ 220, ora se reconhece a incidência da norma penal em furto de celular de R$ 35", diz a pesquisadora. Uma análise das principais variáveis invocadas para não aplicar o princípio da insignificância mostra que o valor objetivo da coisa é o mais frequente, seguido pela reprovabilidade social da conduta.

Flexibilidade Para a promotora de Justiça do Distrito Federal Fabiana Costa Oliveira Barreto, autora do livro Flagrante e prisão provisória em casos de furto, existe uma maior flexibilidade no sentido de desconsiderar o crime quando a vítima é o Estado. "A existência de uma vítima concreta muda muito a forma de encarar as coisas, inclusive a pressão política e social pela qual passam os julgadores", diz a especialista. Ela defende que o princípio seja incorporado à legislação, para não restar dúvidas de sua existência e aplicabilidade, mas acredita ser impossível a definição de critérios. "O que é insignificante aqui no DF pode não ser no Sul ou no Nordeste. Até porque há os bens de pequeno valor que não são insignificantes. Uma bicicleta, um relógio, uma camisa. Para esses, defendo um processo no juizado especial criminal, mais célere e menos custoso", afirma.

Sonia Drigo, advogada famosa por levar casos de pequenos furtos às Cortes superiores invocando o princípio da insignificância, considera importante que uma nova lei traga parâmetros para aplicação da tese. "Por que não estabelecer um teto de valor, como há no crime tributário? Além disso, poderia haver outras circunstâncias, como a preservação do patrimônio envolvido e a ausência de resistência no momento do flagrante", opina a advogada. Excluir meses e até anos de cadeia da vida dos autores de furtos de pequeno valor é uma obsessão de Sonia. "Não defendo abrirmos as portas do supermercado a quem quiser levar produtos. Mas pergunto até que ponto esse delito precisa movimentar a máquina do Judiciário, ocupar escrevente, gastar luz e papel", diz a advogada, lembrando que a supressão da cadeia já foi alterada por lei no Brasil a usuários de drogas.

Um dos casos emblemáticos defendidos por Sonia foi o de Maria Aparecida Matos, ex-empregada doméstica portadora de leve retardo mental. Aos 23 anos, ela furtou um xampu e um condicionador no valor de R$ 24 de uma farmácia em São Paulo. Ficou presa por mais de um ano, foi espancada, perdeu a visão de um olho dentro da cadeia até que, em 2005, pelo princípio da insignificância e a insistência de Sonia, acabou absolvida. Ainda tramita na Justiça uma ação para reparação do dano causado pelo Estado a Maria Aparecida, hoje cuidada por uma irmã.

Paradigma

Não há previsão legal do princípio da insignificância. O Judiciário, com destaque para o STF, vem construindo esse entendimento para afastar casos concretos da tipificação de crime. Na formação de critérios de análise da incidência do princípio da insignificância, pode-se considerar um marco o habeas corpus 84.412, publicado em novembro de 2004, de relatoria do ministro Celso de Mello. O caso em questão abordava a ocorrência do furto de uma fita de videogame, no valor de R$ 25, por um garoto de 19 anos, em Barretos (SP). Foi o acórdão "paradigma" a partir do qual a jurisprudência se consolidou.

Defesa

A tese de que o princípio da insignificância é reconhecido pelo esforço de excelentes advogados disponíveis apenas para os ricos cai por terra quando analisada a defesa nos 75 acórdãos publicados pelo STF no período. Em 82,7% dos casos, a defesa ficou por conta da Defensoria Pública, tanto da União quanto dos estados, que obteve êxito em 65% dos pedidos. Enquanto isso, o sucesso conseguido pelos advogados particulares no reconhecimento da insignificância do crime ficou em 38% dos processos defendidos.

Crimes fiscais

A Lei n° 11.033/04, que determinou o arquivamento de autos de execução fiscal cujo valor da dívida fosse inferior a R$ 10 mil, também serviu para o Judiciário passar a considerar a insignificância nos crimes fiscais. Passou-se a associar o desinteresse da União na cobrança desses débitos com a tese da insignificância no plano penal. No caso de crimes contra o patrimônio, porém, não há qualquer previsão legal semelhante. Isso, em parte, pode explicar a resistência do Judiciário em reconhecer o princípio da insignificância no caso de furto, bem como a falta de critérios na aplicação.