Correio braziliense, n. 20066, 29/04/2018. Mundo, p. 14

 

Um longo caminho

Rodrigo Craveiro

29/04/2018

 

 

COREIAS » Depois de uma semana histórica para os dois países, especialistas advertem que a paz na península depende do desmantelamento dos arsenais, da desnuclearização de Pyongyang e de grandes concessões por parte do regime de Kim Jong-un

O gesto de Kim Jong-un de ultrapassar a linha de demarcação da fronteira com a Coreia do Sul e a iniciativa do ditador norte-coreano de conduzir o anfitrião Moon Jae-in ao solo do país comunista, na manhã de sexta-feira (hora local), surpreenderam o mundo. No entanto, analistas advertiram ao Correio que há um caminho tortuoso até a paz reinar na Península Coreana. “Se a paz na região fosse uma maratona, a Declaração Panmunjon pela Paz, Prosperidade e Unificação da Península Coreana nos traria para a linha de largada. As condições se deterioraram tanto, devido ao mau gerenciamento e à hostilidade, que foi preciso uma cúpula histórica para nos levar de volta aos trilhos. O trabalho duro está só começando”, afirmou Harry H. Sa, analista do Programa Estados Unidos do Instituto de Defesa e de Estudos Estratégicos, em Cingapura. Ele alerta que Seul e Washington precisarão encontrar um modo de nutrir e de proteger o processo. “É um desafio ante um presidente imprevisível e instável ocupando a Casa Branca.”

No dia seguinte à cúpula na Zona Desmilitarizada (DMZ), Moon e o colega norte-americano Donald Trump conversaram durante 1 hora e 15 minutos por telefone, às 21h15 de ontem (9h15 em Brasília). De acordo com a agência sul-coreana Yonhap, eles abordaram os resultados do diálogo com Kim. “Acabo de ter ótima conversa com o presidente Moon, da Coreia do Sul. As coisas estão indo muito bem, a data e o local da reunião com a Coreia do Norte estão sendo marcados”, escreveu o republicano no Twitter. A expectativa é de que Trump e Kim se encontrem no início de junho.

“Nova era”

Em Pyongyang, a agência estatal da Coreia do Norte celebrou o “encontro histórico” que abre as portas para “uma nova era”. “Essa cúpula foi realizada graças ao amor iluminado do líder supremo (Kim Jong-un) pelo povo e sua vontade de autodeterminação”, afirmou a KCNA, segundo a qual os dirigentes buscam “assegurar a paz na Península Coreana e a desnuclearização”. O jornal Rodong Sinmun, do Partido dos Trabalhadores da Coreia, dedicou quatro páginas ao evento e estampou 60 fotos, 15 na capa.

“O fim do jogo está na desnuclearização e na reunificação pacífica da Península Coreana. Mas haverá um longo caminho após a reunião entre Trump e Kim”, admitiu Sa, que prevê debates “potencialmente difíceis”. Especialista em Coreia do Norte pelo instituto Atlantic Council (em Washington), Robert Manning concorda que a cúpula de Panmunjon é “o início de um processo demorado”. Ele lembra que as Coreias mantiveram dois encontros anteriores, em 2000 e em 2007, emitiram declarações similares e Pyongyang se afastou dos compromissos. “O maior obstáculo é a dinastia Kim e o seu regime totalitário único. Se o norte-coreano der os passos — como fizeram China e Vietnã — de abertura e de reforma da economia, isso tornará a reunificação mais possível”, disse à reportagem.

Desarmamento

Para Manning, o documento firmado na DMZ sugere que Moon pretende institucionalizar o diálogo Norte-Sul. “Não se anuncia a paz enquanto milhares de tubos de artilharia estão no mesmo local”, opinou. “Se o confronto acabou, como disse Kim, ambos têm de eliminar os arsenais e desmantelar as posições de artilharia ao longo da fronteira, os mísseis e as estruturas de força. Isso inclui a redução do contingente americano na Península Coreana.”O analista lembrou que, ao fim da Guerra Fria, em 1991, EUA e Rússia diminuíram em 90% os seus arsenais nucleares e destruíram mísseis de alcance intermediário. “Qualquer tratado de paz terá de ser endossado por Washington e por Pequim.”

Especialista em Programa Ásia da Carnegie Endowment pela Paz Internacional, James L. Schoff explicou que o intercâmbio entre militares, a questão da Linha de Limite Norte — a demarcação marítima no Mar do Oeste — e as conversas tripartite ou quadripartite sobre a paz são bastante ambiciosas. “Para resolver a guerra, isso significa que todos os direitos de propriedade e temas de compensação serão esquecidos ou terão de ser resolvidos? Eles estão em um longo caminho até um acordo real, mesmo que possam declarar que a guerra acabou. Não há prazo nem metas.”

Schoff vê a reunião entre Trump e Kim com entusiasmo. “Os EUA poderão descobrir mais sobre as ideias de Kim em relação à desnuclearização. Essa é uma questão gritante, que impedirá a cooperação econômica com o Norte se Kim não estiver preparado para concessões”, afirmou. O analista considerou “um tanto surpreendente” a amplitude da agenda da cúpula e questionou as intenções reais de Pyongyang. “Kim busca dinheiro e tenta reduzir as sanções ou está realmente interessado em melhorar as relações intercoreanas? O tempo dirá.”

Eu acho

“A paz sempre tem se mostrado frágil na Península Coreana e já a vimos se despedaçar antes. Seria devastador ver o progresso obtido ser perdido por um tuíte (de Donald Trump). Eu espero que o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, tente demover o republicano de ações desestabilizadoras. Neste momento, o gabinete de Trump está repleto de gente que provavelmente não concorda com a abordagem de Moon.”

Harry H. Sa, analista do Programa EUA do Instituto de Defesa e de Estudos Estratégicos, em Cingapura

“A cúpula foi tão encenada que a substância real terá de sair dos diálogos. Eu incentivaria o cultivo das relações intercoreanas, nas áreas da educação, das artes, da ciência e das conexões em infraestrutura. A parte econômica terá de esperar, até que saibamos mais sobre o caminho para a desnuclearização.”

James L. Schoff,

especialista em Programa Ásia da Carnegie Endowment for International Peace

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Surpresa e sonho de paz em Seul

Antonio Temóteo

29/04/2018

 

 

Seul — Um dia depois do histórico encontro entre Kim Jong-un e Moon Jae-in, a capital sul-coreana amanheceu ontem ensolarada, com o céu azul e com a população entusiasmada ante a possiblidade de reunificação das Coreias, divididas desde o fim de uma guerra que deixou 2,5 milhões de mortos, entre 1950 e 1953. A expectativa é de que a reconciliação entre os vizinhos traga novo ciclo de crescimento econômico, a geração de empregos e o fim das tensões na Península Coreana.

A importância da cúpula entre os dois chefes de Estado foi tamanha que pelo menos 3 mil jornalistas de todo o mundo participaram da cobertura do evento, segundo o The Korea Times. O jornal apontou que empresas e associações se preparam para nova rodada de desenvolvimento, caso um tratado entre as partes saia do papel. Na avaliação da Associação de Empresas de Construção da Coreia do Sul, uma eventual unificação trará a perspectiva de diversos investimentos em infraestrutura, além da abertura de pequenas e médias empresas do setor.

Além das análises positivas do mercado, o assunto foi bastante comentado nas ruas de Seul. Mesmo depois de um dia exaustivo de trabalho no Hotel The Plaza, Oh Su Min, 23 anos, aproveitou os poucos intervalos para se informar sobre o encontro entre os dois chefes de Estado. De acordo com ela, a cúpula era tema recorrente entre hóspedes e funcionários, que aguardam ansiosamente por possíveis desdobramentos positivos para a população de toda a Coreia.

Comoção

Oh Su comentou que os apertos de mão entre Kim e Moon, além do momento em que os dois cruzaram, juntos, as fronteiras de ambos os países, trouxeram grande comoção para o povo sul-coreano e a expectativa de dias melhores. Apesar disso, ela relembrou que em outras duas oportunidades houve negociações que se mostraram infrutíferas.

Apesar dos desfechos negativos dos dois últimos encontros realizados entre as nações, em 2000 e em 2007, o auxiliar de escritório Lee Ung Seop, 26, afirmou que uma possível reunificação do país proporcionará a abertura de novos negócios e de desenvolvimento. Segundo ele, a escalada das tensões entre as Coreias do Sul e do Norte, no decorrer do último ano, trouxe bastante instabilidade para a península. “Espero que essa reunião possa finalmente representar a paz para o país”, comentou.

Ele se disse surpreso com os diversos gestos dos dois líderes de buscarem o fim da guerra e a melhoria do ambiente para a população. Alguns deles ocorreram fora do roteiro formal. O cruzamento da fronteira do Sul para o Norte, por exemplo, não fazia parte da programação definida. Além disso, uma fotografia tirada entre os delegados das duas Coreias também não constava nos planos iniciais dos líderes.