Correio braziliense, n. 20056, 19/04/2018. Mundo, p. 14

 

Raúl passa o bastão

19/04/2018

 

 

CUBA » O último dos irmãos Castro sela a "transição geracional" e entrega a presidência para Miguel Díaz-Canel, o disciplinado cinquentão que assume o comando da ilha como sucessor dos patriarcas. Regime completa seis décadas iniciando nova etapa

Um abraço ensaiado por alguns anos selou ontem o momento em que o primeiro representante da geração nascida após a revolução de 1959 recebeu do mais nobre dos patriarcas a missão de levar adiante o projeto inaugurado por Fidel Castro. No primeiro de dois dias de sessão da Assembleia Nacional do Poder Popular, Miguel Díaz-Canel, sucessor cuidadosamente escolhido e preparado por Raúl Castro, o irmão mais novo e sucessor do líder histórico, foi oficialmente nomeado para assumir os cargos de presidente do Conselho de Estado e presidente do Conselho de Ministros. Pela primeira vez em seis décadas de regime comunista, a ilha terá hoje um líder político que não pertence à família Castro nem à geração que comandou a guerrilha na Serra Maestra.

“Cabe-me a honrosa missão, em nome da Comissão de Candidaturas Nacional, de propor-lhes para presidente dos Conselhos de Estado e Ministros da República de Cuba o companheiro Miguel Mario Díaz-Canel Bermúdez”, anunciou, solenemente, a presidente da comissão, Gisela Duarte. Em seguida, Díaz-Canel e Raúl Castro, na primeira fila do salão, se abraçaram. Minutos antes, haviam entrado juntos e ocupado os assentos como deputados no Palácio das Convenções de Havana. Atrás deles estavam JoséRamón Machado Ventura e Ramiro Valdés — ao lado de Raúl, dois dos remanescentes da geração que luto na guerrilha com Fidel e Raúl.

A chapa submetida ao voto da Assembleia Nacional inclui, como candidato o primeiro vice-presidente — cargo ocupado até ontem por Díaz Canel —, o sindicalista afrocubano Salvador Valdés Mesa, 72 anos, e os demais 23 membros do Conselho de Estado. A sessão será retomada hoje, com a proclamação oficial do resultado. A data é simbólica: corresponde ao 57º aniversário da vitória na Baía dos Porcos (Playa Girón), onde Fidel e Raúl lideraram o jovem exército revolucionário contra uma força expedicionária anticastrista treinada e financiada pelos Estados Unidos, em 1961.

Os 31 cargos do Conselho de Estado são nomeados entre os 605 deputados que integram a Assembleia Nacional, eleita em março, pelo voto popular — mas com apenas um candidato por vaga. O novo parlamento confirmou na sua presidência Esteban Lazo, no cargo desde 2013.

Nova geração

Após o triunfo da revolução, em 1959, e a eleição de Fidel Castro como presidente, em 1976, Cuba só teve uma transição real. Em 2006, quando uma operação de emergência forçou o Comandante à aposentadoria, ele passou a chefia do Estado, do governo e do Partido Comunista de Cuba para o irmão mais novo. Fidel morreu em novembro de 2016, e coube a Raúl concluir a passagem do bastão para a nova geração.

Miguel Díaz-Canel deve continuar as reformas econômicas iniciadas pelo antecessor e enfrentar o esperado recrudescimento do embargo econômico imposto desde 1961 pelos Estados Unidos. Em 2015, os dois países retomaram as relações diplomáticas, após meio século de Guerra Fria, e no ano seguinte Barack Obama visitou a ilha. A chegada de Donald Trump à Casa Branca, em janeiro de 2017, deteve a reaproximação.

Não é uma missão fácil que cabe a Diaz-Canel, engenheiro formado na universidade técnica de Santa Clara e na exigente escola do Partido Comunista de Cuba (PCC) .Pela primeira vez em seis décadas, o presidente não será um veterano da luta revolucionária nem vestirá a farda verde-oliva das Forças Armadas Revolucionárias (FAR). Também não será o primeiro-secretário do partido, posto mantido até 2021 por Raúl Castro, que deverá ser a ponte entre a nova equipe de governo e a velha-guarda.

“Ele não é nem Fidel nem Raúl, e as pessoas não vão ter com ele a mesma relação (de comando). Ele tem que se mostrar mais capaz de fazer as coisas”, analisa o cientista político cubano Arturo López-Levy. Mas a “transição geracional”, como vem sendo chamada há cerca de uma década, “não é improvisada, mas muito bem estudada”, diz López-Levy.

“O governo que estamos escolhendo terá sempre uma dívida para com o povo, que vai participar das decisões”, declarou Díaz-Canel depois de votar nas últimas eleições legislativas, em março. As reformas apontam para reativar uma economia que cresceu 1,6% em 2017, altamente dependente das importações e da ajuda de um aliado, hoje enfraquecido, a Venezuela.


"Ele não é nem Fidel nem Raúl, e as pessoas não vão ter com ele a mesma relação” 

Arturo López-Levy, nalista político cubano

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Ciclista, cabeludo e fiel aos patriarcas

Silvio Queiroz

19/04/2018

 

 

Santa Clara, a cidade da região central de Cuba que ostenta o mausoléu com os restos mortais de Ernesto Che Guevara, acostumou-se a vê-lo pedalando entre sua casa e a sede local do Partido Comunista de Cuba (PCC). Miguel Díaz-Canel, que assume hoje a presidência dos conselhos de Estado e de Ministros, no lugar de Raúl Castro, nasceu ali, pouco mais de um ano depois de o médico revolucionário argentino ter comandado sua coluna guerrilheira na conquista da capital provincial — a derrota que selou o destino do ditador Fulgêncio Batista e determinou sua fuga da ilha, na noite de ano-novo que deu início a 1959.
 
Foi lá, em outubro do ano passado, no cinquentenário da morte do “guerrilheiro heroico”, que o sucessor designado de Raúl Castro perfilou-se para, talvez pela primeira vez, apresentar-se ao país como a nova imagem da liderança do regime instalado seis décadas atrás, sob a liderança de Fidel, irmão mais velho de Raúl, morto em novembro de 2016. Enalteceu o Che, ícone de gerações de esquerdistas de todo o mundo, como a inspiração fundamental para a “construção do homem novo”, a base ideológica do regime.
 
Foi na “cidade do Che” que o novo presidente de Cuba formou-se como engenheiro e começou a escalada silenciosa nas fileiras do partido, começando pela Juventude Comunista, nos anos 1980. Em 1991, Díaz-Canel já integrava o Comitê Central e respondia pela direção do PCC na província de Villa Clara, da qual Santa Clara é a capital. Depois de mais alguns anos e de comandar o partido na província de Holguín, o engenheiro que jamais exerceu a profissão ascendeu em 2003 ao todo-poderoso Politburo — aos 43 anos, o mais jovem dirigente a integrar a alta cúpula comunista.

Miguel Díaz-Canel não perdeu, na carreira, os traços fundamentais que o fizeram popular em Santa Clara. Diferentemente de Fidel e de outros veteranos, nunca foi reconhecido por discursos notáveis, fosse pela verve ou pela duração. Mas era festejado como um “galego” simples: tratava igualmente os hierarcas do regime e os funcionários mais subalternos. Andava de bicicleta apenas por gosto desenvolvido na juventude, quando ostentava cabelos longos — quase um tabu na época — e era fã confesso dos Beatles, como o festejado cantor e compositor Sílvio Rodríguez, um dos pais da nueva trova, que ocupa na história da música cubana um lugar semelhante ao da MPB, no Brasil.

Foi apenas em 2009, já após o afastamento de Fidel, nocauteado por uma operação de emergência na região abdominal, que Raúl decidiu chamar Díaz-Canel para Havana. Encarregou-o do estratégico Ministério da Educação, porta-bandeira de uma das vitrines do regime comunista cubano, ao lado da saúde pública.

O momento não poderia ser mais emblemático. No mesmo ano, com as bênçãos de Fidel, convalescente e manobrando com desenvoltura nos bastidores, o caçula dos Castro destituiu dois dos nomes mais cotados para encabeçar a “transição geracional”. Conscientes de que seu tempo se aproximava do fim, como o de toda a geração da guerrilha na Serra Maestra, Raúl preparava cuidadosamente a futura direção do regime. Carlos Lage, arquiteto das reformas econômicas, e o chanceler Felipe Pérez Roque avançaram o sinal. Foram destituídos dos cargos que ocupavam e afastados do partido, sob a acusação de terem se “oferecido” ao mundo como herdeiros.

Desde então, os caminhos foram se abrindo para o novo “escolhido”. Em 2013, quando se tornou o primeiro vice-presidente, Raúl introduziu a limitação de dois mandatos de cinco anos para os ocupantes de cargos de direção no partido e no Estado. O encontro da nova geração com o poder estava marcado para 2018, e a face de Cuba no período pós-Castro estava definida.