O globo, n. 30799, 03/12/2017. Economia, p. 35

 

Risco fiscal de R$ 549 bi

Cássia Almeida

03/12/2017

 

 

Grandes empresas estimam possibilidade de perdas bilionárias com litígios sobre impostos

A estrutura tributária brasileira, com regras complexas e, muitas vezes, conflitantes, fomenta o litígio, afirmam especialistas. Um mesmo produto pode ser classificado de maneira diferente por órgãos do governo. Isso acarreta um risco bilionário: levantamento mostra que, no ano passado, 35 grandes empresas brasileiras informaram, em seus balanços, que podem ter perdas de até R$ 549 bilhões em disputas sobre impostos. A estrutura tributária brasileira fomenta o litígio. Há inúmeras normas, que muitas vezes divergem entre estados e esferas de governo. Estudo exclusivo do professor do Ibmec-RJ Paulo Henrique Pêgas revela que, no ano passado, as 35 maiores empresas de capital aberto do país informaram, em seus balanços contábeis, que têm risco de perder até R$ 549 bilhões em processos, administrativos e judiciais, referentes ao recolhimento de tributos. — Esse valor corresponde a 42% do patrimônio líquido dessas empresas. Mesmo que parte desses processos seja classificada de perda remota, o valor é tão grande que, se uma empresa perder um terço das causas, pode quebrar. O problema não é o tamanho da carga tributária, é não saber se está certa a forma como o imposto está sendo recolhido — diz Pêgas. O levantamento mostra que, quando se exclui os bancos, as disputas fiscais das empresas não financeiras ocupam um espaço ainda maior do patrimônio líquido: 55%, com dívida total de R$ 454 bilhões. O maior patamar é observado no setor de telecomunicações. Os processos correspondem a 77%, em média, do patrimônio líquido. — Em empresas multinacionais, é impressionante como os balanços mostram os processos concentrados no Brasil. Lá fora, não há esse contencioso tão grande — observa Pêgas. O risco trabalhista, sempre citado como uma dos maiores preocupações das empresas, é bem inferior, de acordo com as informações contidas nos balanços e formulários de referência enviados à Comissão de Valores Mobiliários (CVM, o órgão regulador do mercado de capitais). O risco tributário nessas empresas é 6,4 vezes maior que o contencioso trabalhista, que chegou a R$ 86 bilhões, o equivalente a 7% do patrimônio líquido. Para dar conta da gestão tributária, o grupo Chinezinho, que tem três fábricas no Estado do Rio, mantém nove contadores exclusivamente dedicados à missão, mais dois escritórios de advogados tributários prestando assistência. Segundo Fabrício Ferreira, diretor administrativo e financeiro do grupo, que comercializa 350 itens diferentes, cada produto tem uma particularidade tributária, dependendo da matéria-prima que é usada: — O regime tributário muda dependendo do estado do qual compramos o insumo, se a empresa tem incentivos ou não, se é de um produtor rural.

EMPRESA TEM LAUDO PARA TODOS OS PRODUTOS

O tempo despendido para poder cumprir as exigências deixa o Brasil na lanterna de uma lista de quase 200 países, de acordo com estudo do Banco Mundial sobre ambiente de negócios. Pelo levantamento, referente a 2015, as empresas dedicam 1.958 horas por ano, em média, para preparar, pagar e acompanhar o recolhimento de tributos. O tempo corresponde a quase três meses de trabalho e é 5,7 vezes maior que a média da América Latina. — O Brasil é um ponto fora da curva quando se trata de impostos sobre consumo. Pode-se arrecadar muito com uma legislação mais simples. Na maioria dos países, há um só imposto sobre comércio e serviços. No Brasil, são cinco: PIS/Cofins, ICMS, ISS e IPI — afirma Bernard Appy, exsecretário executivo do Ministério da Fazenda e diretor do Centro de Cidadania Fiscal. Appy critica ainda a autonomia dos estados para legislar sobre impostos. E os municípios também podem fixar regras. Mas o economista cita alguns avanços, quando se trata de Imposto de Renda: — Para a pessoa física, pagar Imposto de Renda é mais fácil no Brasil. Nos Estados Unidos, boa parte dos contribuintes é obrigada a contratar um contador para fazer suas declarações. A advogada tributarista Ana Teresa Lima Rosa Lopes, em sua dissertação de mestrado na FGV Direito SP, também analisou disputas tributárias nas 30 maiores empresas de capital aberto. Em 2014, os processos correspondiam a 32% do valor de mercado das companhias. Ela afirma que a legislação é ruim e considera o Supremo Tribunal Federal (STF) muito lento para analisar as questões.

— Às vezes, não julgar é também julgar. As questões deixam de existir, por mudança no produto ou na própria legislação, que foi alterada antes da decisão do Supremo. Outro problema é que as decisões, muitas vezes, só beneficiam quem entrou com a ação na Justiça. Isso aumenta a judicialização. Se há uma controvérsia, todo mundo entra com ação para se garantir — afirma Ana Teresa. diz que as disputas acabam nos tribunais administrativos e judiciais devido ao fato de o sistema de resolução de conflitos “ser muito ineficiente”: — Quando há divergência de interpretação, o sistema de solução tem que operar desde o início, antes de virar contencioso. Os processos demoram dez, 15 anos. O sistema tributário brasileiro cria situações inusitadas. Até mesmo uma gráfica, com 26 empregados, pode ter uma complexidade única. Sergei Lima, presidente do Conselho de Assuntos Tributários da Firjan, vive essa situação na sua empresa, a Gráfica Lima. Dependendo do cliente, ele tem de recolher IPI, ICMS ou ISS: — Se eu produzir uma caixa de remédio, vou reAppy colher IPI. Mas, se for um rótulo, ou uma etiqueta, devo pagar ICMS. Já quando imprimo um papel timbrado, é ISS. Mas não sei explicar a lógica do legislador para estabelecer essas diferenças. Entre os principais motivos para contestações na Justiça e no Executivo está a identificação de insumos da produção para conseguir crédito tributário. Ana Teresa cita uma empresa onde todos os itens da produção são “laudados”. Até um simples parafuso tem um laudo técnico pronto para atestar que faz parte da produção. Como os impostos incidem sobre o valor adicionado ao produto, a empresa acumula um crédito tributário sobre o insumo que usou para abater do imposto devido. A discussão é: o produto é insumo ou não? — Por exemplo, a lenha usada na caldeira para produzir pão é considerada insumo e gera crédito para ser abatido no pagamento de PIS/Cofins. Mas a lenha usada para manutenção da caldeira usada na produção, não — explica Pêgas. O segundo motivo para os litígios, de acordo com Appy, é o nível de detalhamento dos impostos, já começando pela Constituição: — Há mais de mil palavras na Constituição tratando de matérias tributárias. Em outros países, há muito menos.

QUANDO A DISTÂNCIA MAIOR COMPENSA MAIS

Há ainda a guerra fiscal entre os estados. Os benefícios tributários a que os governos estaduais recorrem para atrair empresas acabam gerando decisões administrativas pouco lógicas. Pêgas cita o exemplo de uma rede de drogarias que prefere fazer seus caminhões de entrega percorrerem 500 quilômetros e gastar seis horas de viagem para aproveitar os benefícios tributários dados por Minas Gerais. Como as filiais ficam mais perto da divisa com São Paulo, seria mais rápido mandar os medicamentos do centro de distribuição de Ribeirão Preto, percurso que seria de duas horas e 170 quilômetros. Mas, agindo assim, a empresa perderia o benefício fiscal dado por Minas. Segundo Appy, grande parte da movimentação de cargas no Brasil é explicada pelos benefícios tributários que podem ser oferecidos pelos 26 estados e pelo Distrito Federal: — Essa situação certamente diminui a produtividade e tira pontos do Produto Interno Bruto (PIB) potencial (a capacidade de o país crescer).

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‘O poder público é permeável a grupos de interesse’

Marcos Lisboa

03/12/2017

 

 

Professor do Insper afirma que, ao proteger setores e empresas, sociedade acaba gerando regras e exceções que complicam o sistema

O que faz o sistema tributário ser tão complexo?

Podemos começar com PIS/Cofins. São normas e mais normas para compensar no pagamento de PIS/Cofins, que varia de setor para setor. Além disso, há setores em que o imposto é não cumulativo (gera crédito tributário) e há outros em que é cumulativo. Há os que são tributados pelo lucro presumido, outros pelo lucro real. Só no mundo federal, já virou uma bagunça. Como se isso não fosse suficiente, entra o ICMS dos estados. Aí acabou a vida. São 27 legislações diferentes que não conversam entre si. Como se não bastasse, há a substituição tributária. Os governos federal e estadual preferem recolher o imposto do comércio de empresa fornecedora, do grande, mas como saber por quanto o bar vai vender a cerveja, por exemplo? Não sei.

Quais são as consequências disso?

Mobiliza gente, tempo, gera incerteza, tudo isso é peso morto, dinheiro da sociedade jogado no lixo. O ambiente de negócios fica pior, porque tenho que ser muito mais cuidadoso, gasto tempo para pagar menos imposto, porque meu concorrente pode ter conseguido um esquema especial e eu perco mercado.

Como a estrutura tributária ficou assim?

Minha tese é que a sociedade brasileira acha razoável que alguns setores sejam tratados diferentemente. No comércio exterior, meu produto é diferente do finlandês, então mereço tarifa de importação para me proteger. Sou um pequeno produtor, tenho que pagar menos. O nosso Simples tem um teto de US$ 1 milhão; nos Estados Unidos, é de US$ 100 mil. Somos permeáveis a grupos de interesse. Como a sociedade aceita e acha razoável, o poder público é permeável à pressão. É uma sociedade que se acostumou com o tratamento diferenciado. Como não sou igual aos outros, busco mecanismos para que o Estado me conceda essa diferença. Alegam que vão gerar emprego, portanto devem ter regras especiais, mas todo mundo gera emprego. Somos reféns dessa nossa crença de que tratar diferente é bacana. Criamos uma armadilha. O culpado somos nós. (Cássia Almeida)