Correio braziliense, n. 20040, 03/04/2018. Mundo, p. 20

 

Adeus a Mama Winnie

03/04/2018

 

 

ÁFRICA DO SUL » Ícone da luta contra o apartheid durante os anos de prisão do marido, Nelson Mandela, Winnie Mandela morre aos 81 anos e é reverenciada por gerações de ativistas. Companheiros e líderes políticos exaltam a coragem e a trajetória polêmica

A África do Sul despediu-se ontem de um ícone da luta da maioria negra contra o regime de segregação racial do apartheid. Controversa, indomável e carismática, Winnie Mandela morreu ontem, aos 81 anos, em um hospital de Joanesburgo onde ficou internada por 10 dias. “É com grande tristeza que informamos ao público que Winnie Madikizela Mandela faleceu no hospital Milkpark”, declarou o porta-voz Victor Dlamini. A mulher que carregava o sobrenome de Nelson Mandela, primeiro presidenete negro da história do país, conhecida por muitos como “a mãe da pátria”, morreu “em paz e rodeada pela família”, informou Dlamini.

“Ela lutou valentemente contra o apartheid e sacrificou a vida pela liberdade do país”, continuou o porta-voz. “Manteve viva a memória do marido encarcerado, nos anos de Robben Island (a ilha-prisão onde o líder passou a maior parte dos 27 anos como prisioneiro), e ajudou a dar à luta pela justiça na África do Sul um dos seus rostos mais reconhecíveis.” A Fundação Nelson Mandela lamentou “a falta que fará” a ex-mulher do patriarca. “Todos os sul-africanos devem agradecer a Mama Winnie”, diz a nota da fundação.

Foi a trajetória de imagem viva da resistência ao apartheid, no longo período em que os sul-africanos não podiam ver nem ouvir Mandela, que dominou as homenagens a Winnie por todo o país. Em especial, ela foi lembrada em Soweto, subúrbio negro de Joanesburgo, palco de um levante anti-racista esmagado pelas forças de segurança, em 1977. “Ela simbolizava a força, a resistência e uma paixão eterna pela liberdade”, diz um comunicado do Congresso Nacional Africano (CNA), partido que liderou a luta anti-apartheid e governa desde 1994. “Lutou sem descanso para que tivéssemos uma sociedade livre e igualitária.”

Em pronunciamento pela tevê, o presidente Cyril Ramaphosa exaltou Winnie como “uma voz de desafio” ao governo da minoria branca e um “símbolo do desejo do nosso povo por liberdade”. “Diante da exploração, foi uma campeã da justiça e da igualdade”, completou. Em comunicado, o ex-arcebispo anglicano Desmond Tutu, ganhador de um Nobel da Paz pela luta contra o apartheid, ressaltou a coragem de uma mulher jovem que “se negou a ceder ante a prisão do marido e a perseguição contínua contra a família” por parte das forças de segurança. “Sua atitude de desafio me inspirou profundamente, assim como a muitas gerações de lutadores.”

Casamento

Nascida Nomzamo Winifred Zanyiwe Madikizela, em 26 de setembro de 1936, na província do Cabo Oriental, Winnie mudou-se para Joanesburgo e obteve em 1955 o diploma universitário de serviço social, exceção para uma mulher negra, na época. Em 1957, conheceu o advogado e ativista anti-apartheid Nelson Mandela, com quem se casaria um ano depois — ela com 21 anos e ele, divorciado e pai, com quase 40. Logo no início, o casamento foi abalado pelo engajamento político do marido. “Nunca tivemos uma vida familiar (...) não podíamos tirar Nelson de seu povo”, escreveu a ativista em suas memórias. “A luta contra o apartheid, pela nação, vinha primeiro.”

Mandela passou à clandestinidade e foi preso em agosto de 1962. A jovem assistente social manteve viva a chama da luta contra o regime racista e passou a ser alvo de intimidações e pressões. Foi presa e teve a casa atacada a bombas duas vezes, além de outras ameaças. Mesmo assim, tornou-se uma das principais figuras do CNA.

Em 1976, em resposta ao massacre de Soweto, Winnie convocou estudantes pobres do subúrbio  rebelde para “lutar até o fim”. Com eles, formou uma guarda pessoal, o Mandela United Football Club (MUFC), que usava métodos brutais, como o de queimar vivos, com um pneu no pescoço, supostos traidores da causa anti-apartheid.

ós-apartheid

Em 1991, já com Mandela fora da prisão, Winnie foi condenada a seis anos de prisão como cúmplice no sequestro de quatro jovens — um dos quais morreu — por sua guarda pessoal, mas a pena foi comutada para multa simples. No ano seguinte, em meio ao impacto político do episódio nas próprias fileiras do CNA, o casal se separou extra-oficialmente. Em 1998, a Comissão da Verdade e Reconciliação declarou Winnie “culpada, política e moralmente, pelas enormes violações dos direitos humanos” cometidas pelo MUFC.

Politicamente isolada dentro do CNA, Winnie criticava com dureza o acordo histórico assinado por Nelson Mandela com os partidos da minoria branca para pôr fim à segregação, após ser libertado, em 1990. Em 1994, na primeira eleição multirracial da história sul-africana, ele foi eleito presidente. “Mandela nos abandonou”, afirmava. “O acordo que ele fez é ruim para os negros.”

A imagem do casal caminhando de mãos dadas, após a libertação do herói anti-apartheid , correu mundo, mas os dois raramente se encontravam. O divórcio foi assinado em 1996, após um processo margo que expôs infidelidades de Winnie. Morto em 2013, Mandela não deixou herança para a ex-mulher. Furiosa, ela iniciou uma batalha judicial para recuperar a casa da família em Qunu (sul), mas não teve sucesso.

“Sua atitude de desafio me inspirou profundamente, assim como a muitas gerações de lutadores”

Desmond Tutu, ex-arcebispo e ganhador do Nobel da Paz

“Ela simbolizava a força, a resistência e uma paixão eterna pela liberdade”

Nota do Congresso Nacional Africano

Vida de combates

1936

Winnie Madikizela nasce em 26 de setembro no Cabo Oriental

1955

Torna-se a primeira assistente social negra do país, em um hospital de Soweto, subúrbio de Joanesburgo

1958

Casa-se com Nelson Mandela, advogado e ativista antiapartheid

1962

Mandela é preso e Winnie fica sozinha com as filhas. Apesar de intimidações e passagens pela prisão, torna-se uma das principais figuras do Congresso Nacional Africano (CNA)

1986

Em seu discurso mais polêmico, ela pede a libertação do país com fósforos, referência à tortura do “colarinho” (pneu inflamado ao redor do pescoço)

1990

Mandela é libertado após 27 anos

1991

Winnie é considerada cúmplice no sequestro de quatro jovens por sua guarda, o Mandela United Football Club (MUFC)

1992

Acusada de corrupção e má administração, é demitida da liderança do CNA e se separa de Mandela

1994

Vice-ministra da Cultura no primeiro governo pós-apartheid, é demitida no ano seguinte, por insubordinação, mas mantém o mandato de deputada

1996

Divorcia-se de Nelson Mandela

1998

A Comissão da Verdade e Reconciliação declara Winnie “culpada política e moralmente por enormes violações dos direitos humanos” cometidas pelo MUFC

2003

É condenada por fraude