O globo, n. 30818, 22/12/2017. País, p. 3

 

Impasse com os hermanos

Cleide Carvallho e Gustavo Schimitt 
22/12/2017
 
 
Brasil ameaça não colaborar com investigações na Argentina por falta de garantia a delatores

-SÃO PAULO- As revelações da Odebrecht sobre pagamento de suborno em diversos países da América Latina, que levaram à prisão o vice-presidente do Equador, Jorge Glas, e arrastaram o presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, para um processo de impeachment, correm o risco de passar em branco na Argentina. O acordo de leniência da empreiteira brasileira, que se dispõe a devolver, neste momento, US$ 35 milhões ao país vizinho, referentes a propina a agentes públicos portenhos, está travado. E as autoridades brasileiras já informaram que não haverá colaboração enquanto a Argentina não estabelecer regras claras que protejam delatores brasileiros.

Falta na Argentina um arcabouço de leis, civis e penais, capaz de dar sustentação ao turbilhão de denúncias que abarcam negócios fechados durante, pelo menos, oito anos (2007 a 2015) no governo da ex-presidente Cristina Kirchner — e que podem servir de estopim para investigações capazes de resvalar em integrantes do governo de Mauricio Macri.

Ainda que lentas, as conversas só avançam na esfera civil, onde o que está em jogo é o ressarcimento do prejuízo ao Tesouro argentino. Ainda assim, emperram nas garantias aos delatores brasileiros. No Brasil, os colaboradores negociam de antemão o benefício da delação. Na Argentina, a Lei do Arrependido não assegura aos colaboradores da Justiça que o acordo fechado por eles no Brasil seja integralmente cumprido, e não permite a negociação do perdão, como ocorre aqui. A lei argentina só passou a recoO nhecer colaboradores em investigações sobre corrupção em 2016. Antes, o arrependimento só era possível para crimes de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro.

Autoridades brasileiras disseram ao GLOBO que a Argentina não receberá as provas entregues pelos delatores da Odebrecht, se insistirem em ignorar os termos já acordados no Brasil, e também nos Estados Unidos e na Suíça. Para contornar a deficiência da legislação local, a solução apontada pelo Brasil é fazer valer os acordos internacionais anticorrupção, dos quais os dois países são signatários.

De acordo com a delação, a Odebrecht pagou propina na Argentina em obras orçadas em US$ 4,2 bilhões para a construção de um gasoduto, da Ferrovia Sarmiento, que liga a capital ao Oeste da Grande Buenos Aires, e do projeto Água Potável Paraná de las Palmas, de tratamento de água para consumo humano, na capital.

PROPINA A AGENTES PÚBLICOS

Embora boa parte do acordo esteja em segredo de Justiça, pelo menos dois delatores da empresa, o ex-vice presidente para a América Latina Jorge Mameri e o executivo Márcio Faria, revelaram pagamentos de propina a agentes públicos no país vizinho.

A história das obras é semelhante aos casos brasileiros marcados pelo atraso e pela corrupção. O contrato da ferrovia foi assinado em 2008, mas as obras só começaram a sair do papel no ano passado, quase uma década depois. Nesse projeto, delatores da Odebrecht revelaram pagamentos de propinas a pessoas ligadas ao ex-ministro do Planejamento Júlio de Vido, que ocupou o cargo nos governos dos ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015).

Em agosto, o GLOBO mostrou que a delação de Mameri aponta que funcionários do Ministério do Planejamento e da estatal Água e Saneamento Argentino (Aysa) receberam US$ 14 milhões para que a Odebrecht ganhasse a licitação de Las Palmas. Foram pagos a Raul Biancuso, da Aysa, US$ 6,6 milhões. Depois, mais US$ 6,45 milhões a um funcionário do Ministério do Planejamento.

O impasse na Argentina não interessa à Odebrecht. Com três obras em andamento no país vizinho, a empreiteira está impedida de participar de novas licitações no país desde junho passado, quando sua licença anual para contratações com o setor público não foi renovada. Além disso, a empresa aposta nos negócios fechados na Argentina para saldar o débito imposto pela corrupção. Ao governo Macri, a Odebrecht propôs pagar os US$ 35 milhões com o lucro de suas operações em território argentino — descontadas as despesas com operações, fornecedores e impostos.

Recentemente, o Legislativo da Argentina aprovou uma Lei de Responsabilidade Penal Empresarial, que permite a solução de crimes praticados por empresas no âmbito civil. Mas nem isso ajudou a Odebrecht, já que ela não retroage e só vale para crimes cometidos após a vigência da lei.

ressarcimento do governo argentino é discutido no âmbito da Procuradoria do Tesouro. Na área penal, havia resistência por parte da procuradora geral Alejandra Gils Carbó, indicada ao cargo pela ex-presidente Cristina Kirchner. Mas, com a renúncia de Carbó e sua saída prevista para 31 de dezembro deste ano, há possibilidade de avanços.

O governo Macri é favorável ao acordo com a Odebrecht. Para uma gestão que diz tentar imprimir na gestão pública a agilidade da iniciativa privada, o acerto seria uma oportunidade de modernizar as leis do país e deixar a Argentina próxima do sonho de integrar a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube de países ricos que só tem dois representantes da América Latina: México e Chile.

A ampliação dos mecanismos anticorrupção, porém, não é vista com entusiasmo por grandes empresas argentinas. Há quem defenda que as leis devem reclamar a indenização por prejuízos causados aos cofres públicos, mas sem que isso dependa da condenação dos responsáveis. A preocupação se explica: para atuar na Argentina, a própria Odebrecht teve de aceitar operar em consórcios com empreiteiras locais. O raciocínio dos investigadores é lógico: se a brasileira pagou propina, as empresas locais não devem ter passado incólume à corrupção.