Correio braziliense, n. 20059, 22/04/2018. Mundo, p. 12
A nova "Guerra Fria"
Rodrigo Craveiro
22/04/2018
DIPLOMACIA » Escalada de tensão entre a Rússia e os Estados Unidos revive confronto entre as duas potências, o qual ameaçou o planeta durante cinco décadas. Especialistas não descartam conflito militar depois de resposta a suposto ataque químico na Síria
Pela primeira vez desde a dissolução da União Soviética, em 1991, duas potências militares revivem o temor de um conflito nuclear. A hipótese de confronto de proporções inimagináveis ganhou força no último dia 13, depois que os Estados Unidos comandaram uma coalizão, formada por França e Reino Unido, e responderam com uma ofensiva cirúrgica ao suposto ataque químico ocorrido em Douma, na região de Ghouta Oriental, seis dias antes. O contexto político da troca de ameaças ressaltou a nova “Guerra Fria” entre a Casa Branca e o Kremlin — este último, aliado do regime sírio de Bashar Al-Assad. De um lado, Donald Trump, um líder impulsivo e capaz de tuítes nada diplomáticos. Do outro, Vladimir Putin, um presidente calculista e ávido em recuperar o poderio minado pelo colapso da União Soviética. No meio, um conflito civil que deixou mais de meio milhão de mortos.
“Nossa relação com a Rússia é pior agora do que nunca, e isso inclui a Guerra Fria. Não há razão para isto. A Rússia precisa de nós para ajudarmos com a sua economia, algo que seria muito fácil de fazer, e nós precisamos que todas as nações trabalhem juntas”, afirmou Trump, por meio do Twitter, cerca de 48 horas antes dos bombardeios à Síria. O republicano tinha usado o mesmo ambiente para provocar a Rússia, principal inimigo dos EUA entre 1947 e 1991 (leia o Para Saber mais). “A Rússia promete derrubar quaisquer e todos os mísseis disparados na Síria. Esteja pronta, Rússia, pois eles estarão vindo, bons, novos e ‘inteligentes’! Vocês não deveriam ser parceiros de um animal assassino!”, escreveu. Dois dias depois, Trump cumpriu a promessa e Moscou não revidou. O republicano advertiu o Kremlin a não apoiar um “ditador assassino”.
Putin alertou que considerava “essencial evitar qualquer ação irrefletida e perigosa, (…) que teria consequências imprevisíveis”. “O estado atual do mundo nos dá apenas motivos para nos preocuparmos. A situação do mundo está se tornando caótica”, advertiu. Depois dos bombardeios liderados pelos EUA, a Rússia não conseguiu aprovar resolução na ONU condenando a ofensiva militar contra Al-Assad.
A crise envolvendo a participação do Kremlin na guerra civil síria é mais um elemento desestabilizador entre Moscou e o Ocidente (veja arte). Nas últimas duas décadas, intervenções da Otan no Kosovo, a adesão de ex-repúblicas soviéticas à aliança atlântica, a ofensiva russa contra a Geórgia e a anexação da península ucraniana da Crimeia por parte da Rússia evidenciaram o mal-estar de ambos os lados. Moscou teria interferido nas eleições americanas de 2016 e envenenado o ex-espião russo Serguei Skripal, em 4 de março passado, no Reino Unido.
Bipolaridade
Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (Moscou), Lilia Shevtsova admitiu ao Correio que a Rússia e os EUA estão em uma etapa de confrontação que lembra a Guerra Fria. “É verdade que, ao menos por enquanto, não existe ameaça de conflito nuclear. A Rússia não tem recursos suficientes para lutar pela bipolaridade”, afirmou. No entanto, a especialista adverte que um fator torna o atual confronto assustador: os antigos tabus e os instrumentos de controle não funcionam. “Ambos os países se engajaram em uma roleta russa. Por quê? A razão está no modo de sobrevivência do Kremlin e na forma com que os EUA projetam a sua dominação”, disse.
Shevtsova crê que nem a Rússia nem os EUA gostariam de se mover para além do recrudescimento de tensões na Síria. “Apenas 19% dos russos pensam que a meta da política externa deveria ser a contenção dos Estados Unidos. O problema é que não estou certa se Putin sabe como descer da árvore.”
Ex-embaixador americano no Azerbaijão e na Bósnia e Herzegovina, Richard Kauzlarich classifica a crise entre EUA e Rússia de “ruim” e acusa o líder russo de optar pelo confronto na Ucrânia e na Síria, além de intervir nas eleições de 2016. “As ameaças de Putin de fortalecimento do arsenal nuclear têm preocupado a todos. A última rodada de sanções dos EUA danificou as autoridades próximas ao Kremlin”, afirmou o também professor da Faculdade de Política e Governo da George Mason University, na Virgínia.
Ele explicou que, ao contrário da antiga Guerra Fria, o novo contexto é desprovido de conteúdo ideológico. “Se esta é uma nova Guerra Fria, ela tem muitas das características da Velha Guerra, como a ameaça de uso de aeronaves, o ruído das armas nucleares e a dura retórica. Putin considera o colapso da União Soviética como a maior catástrofe do século 20. Ele tenta reverter as perdas da Rússia e os ganhos do Ocidente”, comentou. Kauzlarich concorda com Shevstova sobre a imprevisibilidade da escalada. “Uma coisa está clara: o risco de conflito, seja ele intencional ou acidental, é alto. Há poucos caminhos abertos para reduzir as tensões.”
» Opaq coletou amostras na Síria
Investigadores internacionais entraram, ontem, na cidade síria de Douma e coletaram amostras, duas semanas depois do suposto ataque químico no local — o qual teria deixado pelo menos 40 mortos. Os inspetores desembarcaram na Síria no último sábado, mas não conseguiram entrar no ex-reduto rebelde. Uma equipe de segurança da ONU chegou a ser alvo de disparos.
» Pontos de vista
Por Lilia Shevtsova
Ambição pelo poder
“Os tempos são diferentes da era da Guerra Fria. Os recursos da Rússia são bem distintos do poderio da antiga União Soviética. O presidente russo, Vladimir Putin, e o Kremlin tentam reafirmar o papel global de Moscou. Uma razão chave está no fato de que o status de grande potência é o meio mais eficiente para o Kremlin legitimar o seu poder. A ambição de Putin, nesse sentido, também poderia fazer diferença.”
Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou)
Por Richard Kauzlarich
Falta de respeito
“Putin crê que o Ocidente, e em particular os EUA, não mostraram à Rússia o respeito que ela merece como potência. A posse de armas nucleares e a exportação de energia são dois dos maiores atributos desse estado. Putin vê o caos criado na Ucrânia e na Síria como forma de ganhar a atenção do Ocidente e de engajar a Rússia na solução dos problemas criados por ele mesmo. Isso é parte de seu esforço para desempenhar um papel global.”
Ex-embaixador dos EUA no Azerbaijão e na Bósnia e professor da Faculdade de Política e
Governo da George Mason University
Para saber mais
Medição de forças
De um lado, os Estados Unidos, o império capitalista. De outro, a União Soviética, o bastião do comunismo. As superpotências começaram a travar embate político, militar e ideológico nos anos 1940. A Guerra Fria atingiu o pico entre 1948 e 1962, quando os soviéticos tentaram impor um bloqueio a Berlim Ocidental; os americanos criaram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para resistir à presença militar soviética na Europa; e Moscou detonou sua primeira bomba atômica, encerrando o monopólio americano sobre a arma nuclear.
Em 1962, os EUA e a União Soviética investiram em mísseis balísticos intercontinentais. No mesmo ano, Moscou instalou, secretamente, mísseis em Cuba apontados para cidades americanas. Nunca antes na história houve ameaça tão grave de confronto nuclear. Washington e Moscou assinaram um Tratado de Proibição de Testes Nucleares, em 1963. Com o fim da União Soviética, em 1991, o fantasma de uma guerra entre os dois países foi exorcizado.