O globo, n. 30794, 28/12/2017. Mundo, p. 26
Eduardo Bresciani
28/12/2017
A crise que culminou com a expulsão recíproca de diplomatas entre Venezuela e Brasil agrava a combalida relação comercial entre os países, já em queda livre nos últimos anos. Analistas destacam que o rompimento de canais diplomáticos pode gerar mais dificuldades para exportadores brasileiros receberem pelos produtos já enviados e serviços já prestados. De janeiro a novembro deste ano as exportações brasileiras à nação vizinha caíram 60%, enquanto as importações recuaram 9%. O ex-embaixador Rubens Barbosa, diretor-presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) elogiou a decisão brasileira de ter adotado a medida de reciprocidade diante da declaração do embaixador brasileiro Ruy Pereira como persona non grata pela Assembleia Constituinte Venezuelana. O Brasil expulsou o encarregado de negócios da Venezuela em Brasília, Gerardo Antonio Delgado Maldonado, como resposta. Barbosa ressalta, porém, a dificuldade que pode ser gerada às empresas brasileiras pela falta de canais diplomáticos. — Hoje o Brasil e a Venezuela, na prática, estão sem relações. Os dois embaixadores estão fora e não há comunicação direta. A atitude do governo brasileiro foi correta, em cima dos fatos, de a Venezuela caminhar para se tornar um regime autoritário, uma ditadura. A importância econômica hoje não é mais pelo fluxo de comércio, que caiu muito, mas é que a Venezuela deixou de pagar empresas brasileiras, e elas têm que receber pelo que venderam, pelo serviço prestado. E para isso tem que haver contato com o governo venezuelano para resolver — observa Barbosa.
ESPECIALISTA RECOMENDA ‘PACIÊNCIA ESTRATÉGICA’
O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) Guilherme Casarões destaca que a Venezuela é hoje uma preocupação mais do ponto de vista humanitário e político do que econômico, em virtude do desastre do país vizinho. Ele ressalta que, em relação às dividas com empresas brasileiras, não há nem como aplicar sanções para tentar resolver a questão. — Quando a Venezuela foi colocada de forma atabalhoada no Mercosul, em 2012, se destacava a importância econômica. Nesses cinco anos, porém, essa dimensão foi sendo deixada de lado por causa da forte crise interna. A Venezuela acaba se transformando em um fardo econômico, muitos empresários brasileiros levaram calote e o Brasil não tem meios pra tentar impor a sua vontade empresarial. Não tem como aplicar sanções, por exemplo, porque isso agravaria o quadro humanitário. Enfim, a preocupação hoje acaba sendo mais de natureza humanitária e política do que econômica — analisa Casarões. Os calotes e as sérias dificuldades econômicas do país vizinho fizeram com que, além da redução de valores, diminuísse o número de empresas brasileiras dispostas a exportar para a Venezuela. De acordo com os dados do Ministério da Indústria e Comércio, o número de exportadores caiu 20% do ano passado para este, indo de 1.242 empresas para 996. O Brasil exportou em 2017, até novembro, R$ 427 milhões. O montante é 60% menor que os mais de R$ 1 bilhão vendidos ao país vizinho em igual período em 2016. Entre os principais produtos registraram quedas expressivas as vendas de carne bovina (95,7%), carne de frango (62,7%), leite (79,7%) e açúcar (34,8%). Entre 2011 e 2014, o total das exportações sempre tinha superado R$ 4 bilhões. Em 2015, o montante já tinha ficado abaixo de R$ 3 bilhões, e no ano passado a queda já havia sido brusca.
A redução da relevância na relação comercial fica ainda mais evidente quando se olha a proporção da Venezuela como destino das exportações brasileiras. Em 2012, o país vizinho comprava 2,1% do total vendido pelo Brasil. Este percentual atingiu este ano 0,2%, depois de ficar em 0,7% no ano passado. Em 2015, a Venezuela era o 15º destino das exportações brasileiras e agora caiu para a 52ª posição. As importações também seguem a mesma direção. Neste ano, até novembro, a queda foi de 9%, com volume de R$ 347 milhões. Entre 2011 e 2014 o volume tinha ficado ao redor de R$ 1 bilhão. As diminuições já haviam sido expressivas em 2015 (42,1%) e 2016 (38,9%). Neste ano, a compra de derivados de petróleo da Venezuela caiu 25,5%. A queda das importações não foi maior porque o Brasil comprou 17,1% mais energia elétrica do vizinho e 56,6% a mais em álcoois. Guilherme Casarões pondera que o desprestígio econômico não permite ao país colocar o vizinho em um segundo plano em sua política externa. Ele lembra que o Brasil mudou o tom com a Venezuela na gestão de Michel Temer e ressalta que aplicar a reciprocidade nesse momento foi uma medida correta, mas critica a condução feita pelo governo brasileiro ao longo deste um ano e meio. — Agora não caberia outra solução, a não ser a reciprocidade. Mas quando se mudou o tom de uma acomodação incômoda que havia na gestão Dilma para uma confrontação direta o Brasil perde a possibilidade de trabalhar por uma solução negociada. Existe um fundo moral que legitima essa posição adotada pela atual gestão, mas o Brasil tem uma responsabilidade que, na minha forma de ver, não comportaria atitude de confronto desse momento. Acredito que o mais recomendável seja o que se falava de usar com a Argentina tempos atrás, a paciência estratégica — afirma Casarões.
NEGOCIAÇÃO SUSPENSA ATÉ ELEIÇÃO
O ex-embaixador Rubens Barbosa destaca que há eleições previstas tanto no Brasil como na Venezuela para o próximo ano. Ele prevê que dificilmente haverá melhora nas relações até esses pleitos. — O melhor seria construir uma negociação com o Brasil e o México, incluindo também Colômbia e mesmo Cuba, para uma transição na Venezuela. Mas eu não vejo uma possibilidade de se fazer isso porque há muita radicalização. E há ainda o componente eleitoral: no Brasil, no México e na Venezuela também há eleições previstas para 2018. Acho que até lá não haverá nem intenção de se negociar — avalia Barbosa. Casarões, por sua vez, ressalta que no caso da Venezuela o endurecimento do discurso com o Brasil de Temer pode trazer dividendos eleitorais a Nicolás Maduro. Ele ressalta que o cenário de incertezas políticas sobre o resultado eleitoral no Brasil dificulta qualquer movimento concreto de negociação. O professor da FGV-SP observa que mesmo em partidos de esquerda têm havido alguns questionamentos a Maduro, em uma amostra de que não há como prever qual será a relação com o vizinho em 2019.
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28/12/2017
Apenas este ano, 69 emissoras de rádio e TV foram retiradas do ar e jornais fecharam as portas sem papel na Venezuela. A crise que atinge os meios de comunicação ainda se dá em meio a uma escalada de agressões contra jornalistas, de acordo com um balanço anual publicado ontem pelo Sindicato Nacional de Trabalhadores da Imprensa (SNTP, em espanhol), principal sindicato do setor do país. A lista inclui 46 rádios, três emissoras de televisão e 20 jornais. O SNTP também registrou 498 agressões e 66 detenções contra jornalistas este ano, e atribuiu ao governo a “intenção de silenciar, a qualquer preço, o descontentamento pela cada vez mais crítica situação econômica e social” no país, com hiperinflação e escassez aguda de alimentos e remédios.
Em relação às agressões, segundo o relatório, a cifra aumentou 26,5% em relação a 2016, quando foram contabilizados 360 ataques. A maioria das 273 agressões ocorreu durante os protestos contra o presidente Nicolás Maduro, que deixaram 125 mortos entre abril e julho. De acordo com o sindicato, 70% são atribuídas a militares e policiais. O documento ainda cita 498 atos que constituem “violações à liberdade de expressão que levaram a níveis insuspeitos do cerco à imprensa independente”: “Utilizando o braço e as armas da Guarda Nacional (militarizada) e as polícias regionais e municipais, a burocracia oficial tentou tornar o conflito invisível”, acrescentou o documento.
Este ano, a Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez “um chamado urgente” para restabelecer as transmissões das emissoras de rádio e TV retiradas do ar, e qualificou as medidas como um “castigo por uma linha editorial crítica”.
O fechamento de meios audiovisuais tem como causa o vencimento de suas concessões para o uso do espaço radioelétrico, que a grande parte da imprensa denuncia ser concedida arbitrariamente. No caso dos veículos impressos, jornais considerados da oposição sofrem a escassez de papel, cuja importação e distribuição são monopolizadas por uma corporação governamental. Maduro e funcionários de alto escalão, por sua vez, se declaram vítimas de uma campanha de desprestígio em meios locais e estrangeiros, e, inclusive, de “propaganda de guerra”.
Apenas este ano, cerca de 20 jornais se viram obrigados a suspender suas tiragens permanente ou temporariamente, e de acordo com o SNTP todos os jornais que restam tiveram que limitar sua paginação e circulação.
No mês passado, a ONG Espaço Público contabilizara mais de 150 meios de comunicação fechados desde 1999, quando o então presidente Hugo Chávez chegou ao poder. Veículos internacionais também se viram afetados pela repressão do governo. Nos últimos meses, a cadeia CNN em Espanhol e as televisões colombianas Caracol TV e RCN foram retiradas da grade de programação das operadoras a cabo por ordem do governo.
LEI PREVÊ EXCLUSÃO DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO
Em novembro, a Assembleia Nacional Constituinte aprovou uma lei que pune crimes de ódio com até 20 anos de prisão e prevê a exclusão de meios de comunicação que os incitem. A nova lei também obriga os meios de comunicação a promoverem “a paz, a tolerância e a igualdade”, e que o “Estado poderá ordenar a difusão” destes conteúdos “por um tempo de 30 minutos semanais”. Para a ex-presidente da Suprema Corte de Justiça Cecilia Sosa, a legislação “pretende legalizar a repressão com uma aparência jurídica”.