O globo, n. 30876, 18/02/2018. País, p. 3

 

O crime na rota da migração

Mateus Coutinho

18/02/2018

 

 

Junto ao fluxo de venezuelanos para Roraima, PCC traz armas e drogas do país vizinho

A porosa fronteira de 1.403 quilômetros que separa o Norte de Roraima da Venezuela — por onde passam os refugiados que escapam da crise no país de Nicolás Maduro — tornou-se, nos últimos meses, alvo de novas operações clandestinas e negociações que ligam a maior organização criminosa do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC), a traficantes venezuelanos de armas e drogas.

Documentos de investigações sigilosas conduzidas pela Polícia Civil do estado e transcrições de interceptações telefônicas entre presidiários de São Paulo e de Roraima, obtidos com exclusividade pelo GLOBO, mostram, pela primeira vez, que a fronteira venezuelana tornouse uma rota de negociação de armamentos pesados para o tráfico de drogas.

Os grampos telefônicos, feitos com autorização judicial em setembro do ano passado, captaram uma negociação entre um representante do PCC de São Paulo e um integrante da facção em Roraima. De um lado da linha telefônica estava o membro da organização criminosa identificado como “Jaçanã”, detido no sistema prisional paulista. Do outro, o traficante identificado como “Toni Caolho”, preso na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, na zona rural de Boa Vista. Sem bloqueadores de celulares, o presídio de Roraima é um escritório avançado do PCC em linha direta com a sede da facção.

Na conversa captada no dia 4 de setembro, às 21h, eles trataram da compra de fuzis e drogas vindos da Venezuela para serem revendidos na região de Santos, no litoral paulista. Em determinado momento, Jaçanã pergunta sobre armamentos de calibre mais grosso a Toni Caolho. O preso em Boa Vista responde: “Os mais grosso (sic), eu tô chegando lá, mano! Eu tô chegando já ali nas AK-47! O cara disse que vai tá mandando umas fotos pra mim essa semana aí. Tamo aqui pesquisando os preço (sic), mano”. De origem russa, o fuzil AK-47 não faz parte do armamento utilizado pelas Forças Armadas e pelas polícias no Brasil, mas compõe o arsenal utilizado pelo exército venezuelano. Milícias e guerrilhas como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) também possuem a arma. Com o declínio do regime de Maduro, o fluxo de armas na região aumentou, segundo autoridades.

O diálogo interceptado surpreendeu pelo tipo de armamento negociado, nunca antes encontrado em Roraima. A informação do grampo poderia ser um elemento solto, uma vez que a conversa entre dois presidiários não se traduziu na compra efetiva. Mas confirmou as suspeitas que os investigadores levantaram três meses antes, Fonte: Polícia Civil de Roraima Editoria de Arte quando prenderam um casal de venezuelanos que estava traficando drogas no Brasil em um carro de placa do país vizinho.

Ao ser detida, a taxista venezuelana Yudith del Carmen, de 41 anos, confessou que fazia viagens para trazer drogas ao Brasil a pedido de traficantes venezuelanos. Ela revelou algo a mais: que recebia muitos pedidos via WhatsApp de presos brasileiros em Roraima com fotos de armas que eles queriam que fossem trazidas do país vizinho. A rota fora descoberta, o que explicou o aumento de apreensões no estado.

Os grampos e o depoimento da venezuelana deram convicção aos setores de inteligência da Polícia Civil de que o PCC opera uma nova rota de importação de armas pesadas na fronteira com a Venezuela. Segundo a Secretaria de Segurança Pública de Roraima, as apreensões de armas no estado passaram de 14, em 2015, para 32, em 2017. O salto nas apreensões revelou, pelo calibre pesado e pela origem dos armamentos apreendidos, que a nova rota já está em funcionamento. Até então, segundo a secretaria, as armas apreendidas no estado eram pistolas de fabricação brasileira de calibres .28 e .40.

CARROS ROUBADOS SÃO MOEDA DE TROCA

A moeda de troca dos negócios criminosos do PCC na fronteira são carros roubados no mercado brasileiro e enviados, muitas vezes com placas clonadas, para a região que divide os dois países. No diálogo interceptado em setembro, ao mesmo tempo em que negociam a compra de armas e drogas dos venezuelanos, os dois membros do PCC conversam sobre as formas de pagamento dos “parceiros” do país vizinho. “Pra nós tá (sic) mandando lá pra Venezuela, lá eles gosta (sic)”. Eles chegam então a conversar sobre os modelos que mais agradariam aos venezuelanos, como Toyota Corolla e Toyota Hilux.

O PCC vem crescendo em Roraima nos últimos anos. A atuação do grupo criminoso começou a ser constatada na região a partir de 2012. No ano seguinte, eram cerca de 50 integrantes, e, hoje, o número de pessoas ligadas à facção chega a 1,3 mil. Só na capital Boa Vista, cidade de 332 mil habitantes, a suspeita é de que a organização criminosa opere mais de 50 pontos de droga e, principalmente, as rotas para a Venezuela.

CRIMES ENVOLVENDO ESTRANGEIROS

Para os investigadores, o aparecimento das novas armas ao mesmo tempo em que o fluxo de imigrantes venezuelanos aumenta não é mera coincidência. Não resta dúvida de que o armamento vem do país vizinho, onde o comércio de armas tem um controle mais frágil e milícias contam com um diversificado arsenal. A preocupação agora é que, com o recrudescimento da crise na Venezuela, os militares de lá passem a ver cada vez mais como alternativa o comércio ilegal de armamento.

O salto nas migrações venezuelanas em Roraima teve início a partir de 2015, com o agravamento da crise no país vizinho. Paralelamente a isso, os índices de criminalidade também têm disparado, com as ocorrências policiais envolvendo estrangeiros — tanto como vítimas quanto como autores das infrações — saltando de 358 em 2016 para 1.759 em 2017, um aumento de 391%. Destes números, a maioria envolve venezuelanos, que estiveram presentes em 1.718 ocorrências no ano passado.

Segundo a delegada-geral da Polícia Civil de Roraima, Edineia Chagas, diferentemente de outros locais, no estado as investigações têm constatado a participação de venezuelanos em grupos do crime organizado, o que aumenta o desafio das polícias ao lidar com a imigração e demanda maior articulação entre os governos federal e estadual.

Por meio de sua assessoria, o Ministério da Justiça informou que repassou mais de R$ 40 milhões a Roraima, em 2017, através de convênios para políticas públicas; doação de armas, veículos e equipamentos; capacitação de mais de 6 mil profissionais estaduais e realização de operação da Força Nacional de Segurança Pública. O ministério informou ainda que o novo efetivo da Força Nacional chegou ao estado na madrugada de sexta-feira e que sua atuação será definida em conjunto com os órgãos locais e as Forças Armadas