O globo, n. 30876, 18/02/2018. Sociedade, p. 39
'Sorry, nós não falamos inglês'
Paula Ferreira
18/02/2018
Apenas 15% dos professores que ensinam o idioma na rede pública dominam a língua
The book is on the table” (o livro está sobre a mesa) talvez seja a única expressão a compor o repertório linguístico de inglês de boa parte dos brasileiros. Uma realidade muito difícil de ser revertida, levando em consideração a formação dos professores dessa disciplina que atuam na rede pública de ensino. O Ministério da Educação (MEC) estima que em torno de 85% dos docentes que dão aulas de inglês para alunos de escolas públicas não dominam o idioma. A deficiência nos cursos oferecidos pelas universidades e a falta de oportunidades para praticar a língua inglesa são as principais causas do problema.
— Os professores que estão preparados têm oportunidade de intercâmbio. Eles conseguem se inscrever nos editais porque atendem aos requisitos. O problema é o restante, que não consegue sequer entrar na formação continuada. Somente cerca de 15% dos professores que atuam na rede pública nessa disciplina têm proficiência — afirma Silvia Donnini, diretora de Formação e Desenvolvimento dos Profissionais da Educação Básica do Ministério da Educação (MEC).
A formação insuficiente dos docentes da área fica explícita nos dados do Censo da Educação Básica 2017, divulgado em janeiro pelo MEC. Apenas 42% daqueles que lecionam inglês no primeiro segmento do ensino fundamental têm formação adequada para a área. A disciplina é a pior no quesito de adequação docente, que considera professores com licenciatura ou bacharelado com complementação pedagógica na mesma área de atuação. Ou seja, há docentes formados, por exemplo, para dar aulas de português, mas que atuam como professores de inglês. No segundo segmento do fundamental, do 6º ao 9º ano, o índice é um pouco mais alto, mas ainda representa menos da metade dos docentes: 49,2%. Nessa etapa, a disciplina é a segunda pior no que diz respeito à adequação, perdendo somente para artes.
Ter uma formação considerada “adequada” na teoria, no entanto, não significa nenhuma garantia na prática. A professora Amanda, que prefere usar esse nome fictício, cursou Letras com ênfase em língua inglesa em uma universidade particular e, mesmo antes de chegar às salas de aula, não se sentia preparada para ensinar o idioma a alunos mais velhos.
— Durante o curso na universidade, minha turma foi diminuindo consideravelmente. Acompanhar as aulas em inglês era complicado. Os colegas que não tinham muitos conhecimentos do idioma entraram em contato com a coordenação, que obrigou os nossos professores a darem aulas em português. Quem não busca uma formação paralela não tem condição alguma de trabalhar como professor depois — desabafa. Por se sentir insegura, ainda na universidade, Amanda procurou um curso de idiomas para complementar a formação. Mesmo assim, encontrou dificuldades quando tentou ensinar inglês para estudantes que já tinham contato com a língua.
— Se você trabalha com crianças até o 5º ano, é mais fácil porque, mesmo que elas façam um curso de inglês, dificilmente estarão no nível intermediário. Já no ensino médio, o aluno sabe que a gramática do professor está errada. Quando eu peguei uma turma nessa fase, passei a me sentir muito insegura, então larguei no final do ano letivo. Preferi trabalhar só com educação infantil.
Para Silvia Donnini, do MEC, melhorar esse quadro passa por uma reformulação do currículo das universidades:
— No Brasil, a formação, em geral, é bastante teórica e menos focada em questões de conversação e proficiência. Isso não corresponde à demanda da prática em sala de aula, que é uma abordagem comunicativa. Precisamos fazer uma revisão do currículo dos cursos de licenciatura e corrigir este problema, que tem sido muito comum. O professor de língua inglesa não é um falante de língua inglesa. Isso faz com que o estudante não tenha uma referência de conversação.
Essa revisão está na mira do Conselho Nacional de Educação (CNE), instância responsável por fazer as modificações desses parâmetros. Antes disso, é necessário que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino médio, prevista para ser entregue ao órgão em março, seja finalizada. A formação das universidades, em geral, prioriza uma abordagem que se distancia, sobretudo, dos novos objetivos traçados pela Base do ensino fundamental, já homologada pelo MEC. O documento, inclusive, aponta o idioma como a língua estrangeira a ser ensinada nas escolas a partir do 6º ano. Antes não havia essa especificação.
— A BNCC assinala uma ênfase maior na conversação e nas questões tecnológicas, e defende que o aluno tenha contato com a língua real, o inglês falado no mundo, não só nos países onde é língua materna— explica Ivan Cláudio Siqueira, membro do CNE, que participou da confecção da Base relativa ao inglês.
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O educador admite, entretanto, que há muitos obstáculos a serem transpostos para garantir que, ao final do ensino fundamental, os alunos tenham uma formação satisfatória no idioma. Um deles é o pouco tempo de aula de língua estrangeira que os alunos têm por semana.
— Ao final do fundamental, o estudante deveria de fato estar no nível básico, o que seria equivalente ao A2 na escala de proficiência, e ter condições de se apresentar, entender coisas relativas à idade. Mas isso está muito relacionado ao contato que ele tem com a língua. Se depender apenas dos cem minutos semanais de aula, o aluno aprende e esquece — analisa Ivan.
Jodie Gray, diretora de desenvolvimento da English UK, uma associação britânica de centros de ensino de inglês, afirma que tornar o idioma a língua estrangeira a ser ensinada nas escolas é uma decisão importante, mas que precisa vir acompanhada de outras estratégias.
— Ainda que não esperemos que todo mundo no Brasil se torne fluente e viaje ao redor do mundo, aumentar o nível de inglês quando as pessoas terminam a educação básica é um ponto de partida. Uma das soluções é fazer uma abordagem mista, em que os docentes melhorem o inglês com uma metodologia de aprendizagem on-line e também presencial.
Para ela, o treinamento inicial de pequenos grupos poderia ajudar nessa tarefa:
— É preciso melhorar as habilidades de linguagem dos docentes e depois pensar sobre metodologia de ensino. Quando há treinamento para um pequeno número de professores, eles se tornam referência e podem ensinar outros. Há um efeito cascata. É sustentável para o futuro e tem custo baixo.
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‘Brasil tem um longo caminho para atingir o necessário’
Dave Allan
18/02/2018
Presidente da Nile, instituição do Reino Unido que atua na formação de docentes, inclusive brasileiros, diz que eles precisam de apoio e motivação
Comparando o Brasil a outros países, qual é o nosso nível de inglês?
Estamos entre os piores países nesse quesito? Não é o pior do mundo, mas tem um caminho longo até atingir o nível necessário e muito longo até ser o melhor. Aqueles que fazem o melhor uso do inglês no Brasil se destacam quando comparados ao resto do mundo, mas representam apenas uma pequena parcela da população. A tendência, no entanto, é melhorar, pois cerca de 10% da população jovem tem um bom inglês, o que já é superior à quantidade entre os idosos. Entre a população pobre, esse percentual cai para 5%. O país, no entanto, está indo na direção correta. Estou esperançoso em relação ao futuro. Como podemos melhorar a formação dos professores de inglês no Brasil? Reconheço o problema e acho que temos que atacá-lo a partir de diferentes perspectivas. Fazer com que haja mais respeito pela profissão é um desses passos. A questão não é só ensinar inglês para quem não sabe o idioma, mas melhorar a fluência daqueles que já têm algum conhecimento. Isso é importante para o futuro do país. É preciso, primeiramente, reconhecer essa necessidade e, depois, atacar o problema usando ajuda interna e externa, utilizando os setores público e privado, incluindo as universidades. Melhorar é possível. Os professores precisam saber o idioma para ensinar, mas também precisam conhecer os melhores materiais didáticos e metodologias. E a questão da avaliação é muito importante também.
Qual a importância das avaliações?
Os professores precisam conhecer as avaliações que são feitas pelo governo e também têm que ser avaliados. É necessário saber o nível de proficiência dos docentes e crescer a partir disso. Eu trabalhei muito no Brasil e sei que há professores ótimos em termos de idioma e metodologia, mas grande parte precisa de ajuda, apoio e motivação.
Como podemos motivá-los?
Respeito, como eu disse antes, melhores salários e melhores recursos. Em qualquer país, os investimentos são compartilhados com vários setores da sociedade. Mas certamente prover o desenvolvimento da carreira, oferecendo recursos não só para a formação inicial, mas também para a continuada, é necessário. O que temos visto em países que tiveram uma grande melhora é que isso foi uma resposta dos políticos, das universidades, de todos. Um programa nacional de longo prazo, com degraus a serem galgados, é necessário.
Como fazer esses avanços sem os recursos necessários?
O que os políticos dizem quando não querem gastar dinheiro é que aqueles que estão envolvidos no problema precisam ser mais eficientes. Você pode impulsionar a eficiência se fizer um uso efetivo de tecnologias modernas, se motivar todos a trabalharem melhor, mas, no fim, não há como realmente atingir o desenvolvimento necessário a menos que você, ativamente, use os recursos corretamente. Política é sobre prioridades, e há uma escolha política e econômica no Brasil no momento. Temos que ter uma visão de longo prazo. Conheço o país desde 1975 e tenho visto grandes melhorias. Sei que, no momento, o fator econômico é uma dificuldade, assim como o fator político, e alguns brasileiros me dizem: “Nós estamos prendendo a respiração para saber para onde as coisas estão indo”. Mas acho que o Brasil vai se levantar novamente, e um fator importante para ativar esse sucesso será priorizar a educação. Os governos anteriores tinham reconhecido a importância da área para a nação como um todo. E, como parte disso, o ensino do inglês terá um papel importante.