Correio braziliense, n. 20043, 06/04/2018. Opinião, p. 13

 

As duas mortes de Marielle

Lúcia Vânia

06/04/2018

 

 

Já se disse que nada desperta mais o interesse das pessoas do que a tragédia humana, exatamente o que se abateu sobre a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Pedro, assassinados barbaramente no Rio de Janeiro no último dia 14. Marielle, uma das vereadoras mais bem votadas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, vinha se destacando, exatamente, pela defesa intransigente da proteção à mulher, principalmente à mulher negra, vítima cada vez mais frequente da violência, em um país cada vez mais violento.

O assassinato de Marielle não representa, pois, um crime comum, se é que se pode falar, em algum contexto, em crime “comum”. Não há, não deveria haver, absolutamente, nada comum em um crime do tipo que for. Ocorre que a violência anda tão naturalizada entre nós, que balas perdidas, latrocínios e feminicídios vêm causando apenas reações localizadas. O caso de Marielle é, porém, emblemático.

Emblemático, em primeiro lugar, pela ampla repercussão. O assassinato de Marielle se tornou um fato dos mais relevantes, desde o início do ano. Sua imagem extrapolou os jornais brasileiros e estampou manchetes em todo o mundo. A força desse evento galvanizou as ruas e as redes sociais.

Quero crer que este é um sintoma de que não estamos, afinal, tão anestesiados. De que não aceitamos a banalização da violência. De que toda a sociedade brasileira quer mais segurança, mais respeito com a vida. Esta, em essência, era a causa da própria Marielle: que cada vida contasse. Diante da repercussão do assassinato, houve quem tentasse, sem nenhuma preocupação com a verificação dos fatos, reduzir o crime a um caso fortuito, a um entre muitos mais.

A morte de Marielle não foi acidental. Marielle não era uma vítima anônima, que estava no lugar errado na hora errada. Tampouco foi vítima de um crime passional. Não era a violência nossa de todos os dias. Quem puxou aquele gatilho sabia o que estava fazendo, tendo planejado, meticulosamente, a ação. Eram profissionais. Era o assassinato como método. Quando não se pôde mais descaracterizar a excepcionalidade do crime, houve quem tentasse descredenciar a própria Marielle.

É uma estratégia conhecida, e que vivem, no cotidiano, as mulheres vítimas de violência. Culpam a vítima para tornar a violência menos grave, mais aceitável. Tentam justificar a violência, como se justificativa houvesse, atribuindo parte da responsabilidade à própria vítima. E submetem, assim, a vítima, a uma segunda violência. Matam-na uma segunda vez. Também aqui, as suspeitas, compartilhadas irresponsavelmente nas redes sociais, não encontraram nenhum amparo na realidade.

Agora que o obscurantismo dos caluniadores vai, felizmente, se dissipando, podemos perceber pelo menos dois outros sentidos por que a morte de Marielle merece ser tomada como emblemática. O primeiro concerne à própria dinâmica das redes sociais, utilizadas sem controle para difundir notícias falsas e propagar discursos de ódio. A garantia constitucional à liberdade de expressão não se confunde com o direito à calúnia, à injúria e à difamação. E proíbe o anonimato. É preciso que a sociedade e o Congresso, em particular, reflitam sobre o tema. No Senado Federal, por exemplo, tramita o Projeto de Lei do Senado nº 473, de 2017, que prevê a criminalização da divulgação das fake news.

Seria necessário integrar essas iniciativas e, à luz do Marco Civil da Internet, buscar formas juridicamente consistentes e socialmente eficazes para evitar que usuários das mídias sociais continuem a romper a fronteira da legalidade. É igualmente importante que invistamos em campanhas educativas que restaurem, entre nós, a civilidade. Em muitos casos, as postagens revelam apenas ingenuidade sobre estratégias de manipulação das redes sociais e falta de reflexão sobre o poder das palavras.

Por fim, há outro sentido por que o caso Marielle merece ter o destaque que vem recebendo. A vereadora vinha denunciando os excessos policiais, a violência institucionalizada, e constituía uma das mais aguerridas lideranças cariocas pelo respeito à dignidade humana dos moradores das comunidades periféricas deste País. Sua morte acende um sinal importante: vem aumentando, no Brasil, o número de homicídios de políticos e ativistas sociais. Apenas neste ano, são pelo menos 12 lideranças mortas – o dobro dos casos registrados no mesmo período de 2017. Segundo o jornal O Estado de S.Paulo, nos últimos cinco anos, o número de ativistas executados chega a 194, sendo 20 só no Rio de Janeiro.

É inadmissível que qualquer representante político venha a ser morto por sua atuação parlamentar. Essa é uma estratégia intimidatória diante da qual não podemos fraquejar. O crime que atingiu Marielle mirou o dever de um parlamentar de fiscalizar os atos do Executivo. Feriu a democracia. Atingiu todo o país. Que utilizemos, pois, o exemplo de Marielle como evidência da necessidade de uma reflexão sobre o funcionamento das redes sociais. Que o utilizemos também para exigir proteção às lideranças políticas. E que não descansemos antes de resolver esse caso, e punir os responsáveis: os responsáveis pela primeira morte e os responsáveis pela segunda morte. Porque o destino daquelas balas e de cada inverdade é também cada um de nós.