Título: Despenalização em debate
Autor: Vicentin , Carolina
Fonte: Correio Braziliense, 26/03/2012, Mundo, p. 12

A guerra contra as drogas nas Américas começou oficialmente há quatro décadas, quando o ex-presidente Richard Nixon declarou que os entorpecentes eram o "inimigo público número um". De lá para cá, no entanto, não houve dinheiro, legislação ou repressão capaz de frear o crescimento do consumo e do tráfico. Ao contrário: os cartéis se fortaleceram e difundiram a violência pelo continente. Só no México, a violência associada ao crime organizado e ao narcotráfico matou cerca de 50 mil pessoas em pouco mais de cinco anos. Cientes de que a briga está perdida, governos latino-americanos estão pressionando os Estados Unidos a debaterem a opção da despenalização. E, pela primeira vez em 40 anos, os norte-americanos, que formam o maior mercado consumidor, aceitaram discutir o assunto.

O tão aguardado diálogo deve ocorrer no mês que vem, durante a Cúpula das Américas, em Cartagena, na Colômbia. É de lá que vem uma das declarações mais ousadas entre os líderes da região. Em novembro, o presidente Juan Manuel Santos tornou-se o primeiro governante latino-americano a admitir publicamente a possibilidade de legalizar e regular o comércio de substâncias até o momento proibidas. "Está na hora de rever a guerra contra as drogas", defendeu, em entrevista ao jornal britânico The Guardian. É verdade que Santos não voltou a fazer afirmações tão efusivas, mas a inquietação acabou contagiando outros presidentes em exercício, que agora clamam por uma mudança de estratégia.

A urgência parte principalmente da América Central, a área mais castigada pelos efeitos colaterais da política repressiva. O último relatório da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife), órgão vinculado às Nações Unidas, aponta que a violência relacionada ao tráfico alcançou níveis "alarmantes e sem precedentes", fazendo da região "uma das mais violentas do mundo". A Jife contabiliza mais de 900 gangues ativas na América Central, com cerca de 70 mil membros. "A situação é muito grave na Guatemala, em El Salvador e em Honduras. Os países sul-americanos fornecem a matéria-prima e os centro-americanos fazem a ponte para que a droga chegue aos EUA", explica Javier Ciurlizza, diretor do Programa para a América Latina e o Caribe do International Crisis Group.

Discurso mudado

Na Guatemala, o cenário é tão cruel que fez o presidente Otto Peréz Molina, um direitista, mudar o discurso sobre o tema em menos de três meses. Ao assumir o cargo, em janeiro, ele prometeu "mão dura" contra os traficantes. Diante da impotência para resolver o problema, Pérez Molina é hoje o mais animado porta-voz dos que querem discutir a despenalização. "Se as drogas forem descriminadas, os cartéis desaparecem", disse ele ao jornal hondurenho La Prensa, na semana passada. "O Estado guatemalteco é muito fraco. O maior risco é que ele entre em colapso e não seja capaz de prover aos cidadãos serviços básicos, como a segurança", assinala Javier Ciurlizza.

Mas Pérez Molina terá de ir muito além das palavras se quiser emplacar a discussão. Embora outros presidentes centro-americanos tenham sinalizado favoravelmente ao diálogo, o mandatário guatemalteco sofreu uma derrota no sábado. Convocados para uma reunião que discutiria a posição da região quanto ao tema, três dos seis presidentes não participaram do encontro: Daniel Ortega, da Nicarágua, Mauricio Funes, de El Salvador, e Porfirio Lobo, de Honduras. Mesmo sem o tão almejado consenso, analistas estão otimistas para a cúpula do mês que vem. "Nas últimas quatro semanas, nós avançamos mais do que em 40 anos. Estamos entrando em uma nova fase. Nas palavras do (ex) presidente Fernando Henrique Cardoso, quebrou-se o tabu que impedia a discussão de soluções alternativas", afirma Miguel D"Arcy, coordenador do Secretariado da Comissão Global de Política de Drogas.

Críticas

A comissão, da qual FHC faz parte, lançou recentemente um comunicado reclamando uma mudança de postura por parte da Organização das Nações Unidas. O braço da ONU responsável por debater as políticas sobre drogas defendeu, neste mês, a continuidade da proibição. "A política de repressão total vem sendo adotada há décadas, mas não está dando certo. É, na melhor das hipóteses, ineficiente, e, na pior, contraproducente", critica Miguel D"Arcy. Como primeiro passo para rever a estratégia, a comissão sugere a descriminação do consumo de maconha.

Depois disso, a sugestão é regular o comércio. A ideia é que a compra e a venda sejam monitoradas pelos governos, tal qual se faz com o tabaco. "Todo mundo sabe que fumar faz mal, mas ninguém proibiu o cigarro. Com o controle da propaganda e da venda, no entanto, o número de fumantes tem caído muito", lembra D"Arcy. Mais importante, contudo, é que seja estabelecida uma agenda de discussões, como defende Coletta Youngers, do The Washington Office on Latin America. "Esse debate precisa seguir adiante, com a participação não apenas de funcionários dos governos, mas também de especialistas e representantes da sociedade civil."