O globo, n. 30859, 01/02/2018. Economia, p. 21

 

Regras atuais da Previdência privilegiam parcela mais rica da população

01/02/2018

 

 

Em 15 anos, déficit da aposentadoria do servidor consumiu 50% mais do que educação

RIO - A análise detalhada dos números da Previdência, mais do que expor o déficit, revela um lado controverso do modelo atual: gasta-se mais para cobrir o rombo das aposentadorias do que com saúde e educação. Na prática, o governo precisa abrir mão de investimentos direcionados à população de baixa renda — quem mais se beneficia de hospitais públicos e escolas gratuitas — para pagar aposentadorias da parcela mais rica da sociedade.

Entre 2001 e 2015, o déficit da Previdência do setor público foi de R$ 1,292 trilhão, mostrou o economista José Márcio Camargo, professor da PUC-Rio, no encontro “E agora, Brasil?”. O valor é 50% superior ao que foi desembolsado pela União com educação no mesmo intervalo de tempo.

— Isso (R$ 1,292 trilhão) também é mais do que tudo o que o governo gastou com saúde nesse mesmo período (2001 a 2015) e sete vezes mais do que foi gasto com o Bolsa Família. É ou não é acachapante? — questionou o economista.

Camargo lembra ainda que todos os funcionários públicos aposentados — em torno de um milhão — estão entre os 10% mais ricos da população. Neste grupo, diz ele, 80% estão entre os 5% mais ricos. Para o economista, a formatação dos gastos com a Previdência representa uma situação “trágica”.

— A Previdência é, provavelmente, o maior mecanismo de concentração de renda que o país tem neste momento. É um mecanismo de transferência de renda de pobre para rico. Não é só o problema fiscal. Não é só o fato de que a Previdência teve um déficit de R$ 268,7 bilhões no ano passado. Isso é fundamental. Mas também é fundamental o fato de que grande parte desse déficit é para financiar uma transferência (de recursos) para os mais ricos. Você está pegando um pouquinho do dinheiro do pobre lá do interior do Piauí e entregando para os 10% mais ricos da população. Se não resolvermos o problema da Previdência, continuaremos tendo os piores índices de desigualdade do mundo — reforçou o economista.

RENDA MAIOR, APOSENTADORIA MAIS CEDO

O professor da PUC-Rio citou um exemplo prático de gasto público inviabilizado pela fração elevada dos recursos do Tesouro Nacional que precisa ser direcionada para as aposentadorias:

— No Brasil, 32% das crianças vivem em famílias pobres, com renda per capita familiar de menos de US$ 2 por dia. Nós temos um déficit público que não nos permite fazer uma política social que resolva esse problema. A situação é absolutamente dramática.

Durante o debate, o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, destacou ainda a desigualdade no acesso às aposentadorias:

— Os aposentados que recebem um salário mínimo se aposentam, em média, com 60 anos. Os aposentados que recebem entre seis e sete salários mínimos, portanto aqueles que em atividade recebiam mais do que isso, se aposentam, em média, com 50 anos. É o Robin Hood às avessas. O cara mais pobre, que ganha menos, é quem se aposenta mais tarde. Trabalha mais tempo, se aposenta mais tarde e ganha menos. Precisamos mudar isso. É um estado de coisas que não podemos aceitar que permaneça.

Camargo elogiou o projeto de reforma de Previdência em discussão atualmente por ir na direção do combate às desigualdades:

— A proposta que sobreviveu (após as mudanças no texto) tenta resolver o problema da desigualdade, que está embutida nesse sistema brasileiro de Previdência Social, que é extremamente desigual. O sistema brasileiro é uma excrescência. Esse é o grande problema.

O texto em debate, que o governo pretende colocar em votação na Câmara dos Deputados ainda este mês, excluiu qualquer mudança na aposentadoria dos trabalhadores rurais. A jornalista Míriam Leitão, colunista do GLOBO, alertou para a distorção que existe entre os dados públicos sobre a população no campo, que vem diminuindo, e o aumento no número de aposentadorias concedidas para trabalhadores rurais. A divergência, segundo ela, pode ser um indício de fraude na concessão dos benefícios.

— (O número crescente de aposentadorias) Não conversa com os números demográficos brasileiros. O Brasil teve um processo de urbanização muito radical e tem uma população rural cada vez menor no campo, mas a aposentadoria rural não para de crescer de modo exponencial — destacou Míriam.

Oliveira reconheceu a necessidade de uma fiscalização maior do governo federal neste aspecto e afirmou que uma parcela expressiva dos benefícios é reconhecida apenas pela via judicial:

— Aproximadamente 30% das aposentadorias rurais são concedidas judicialmente. Isso significa que ela foi negada pelo INSS e, posteriormente, a Justiça concedeu. A proposta original (de reforma da Previdência) focava exatamente na redução das fraudes. A principal fraude é (o trabalhador) manifestar que é do meio rural e não ser. A proposta exigia uma contribuição permanente, além de aplicar uma idade mínima (para a aposentadoria). Mas houve uma resistência muito grande. De fato, nossa preocupação é que existem indícios de números significativos de fraude. O governo vai trabalhar para coibir isso e combater no Judiciário.

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Governo admite entrave na comunicação

01/02/2018

 

 

No ‘E Agora, Brasil?’, ministro destaca ‘guerrilha de desinformação’ sobre a medida

RIO - Apesar de os números evidenciarem o déficit na Previdência e as projeções demonstrarem a tendência de agravamento no cenário, a reforma enfrenta resistências na população. A possibilidade de mudança no sistema previdenciário é frequentemente associada à perda de direitos. Na disputa de narrativas, o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, reconheceu que o governo ainda não conseguiu ultrapassar a barreira de convencimento e afirmou que o tema é de “difícil comunicação”.

O monitoramento das redes sociais feito pelo Palácio do Planalto mostra que as mensagens a favor da reforma dificilmente ultrapassam a fronteira e costumam circular só entre aqueles que já se posicionam a favor das alterações.

— Nós observamos a distribuição de posts nas redes. O que a gente (governo) manda fica no primeiro que recebeu. O cara não replica aquilo. E há um certo isolamento dos grupos. Os que são a favor mandam mensagens para os que são a favor. Os grupos que são contra mandam para os que são contra. O tema em si é árido, difícil, o nosso sistema previdenciário é completamente injusto, cheio de distorções. São muitas regras diferentes, e só para explicar a diferença entre as regras já perdemos um tempo — afirmou o ministro.

‘GUERRILHA DE DESINFORMAÇÃO’

As dificuldades começam dentro do Congresso. Em ano eleitoral, existe uma dificuldade extra, pois mesmo os deputados e senadores aliados podem se sentir expostos dentro de suas bases eleitorais ao apoiarem um tema visto como impopular.

— O convencimento dos parlamentares envolve justamente esse processo de comunicação. O governo tem empreendido uma série de campanhas. No fim, o parlamentar está preocupado com a base eleitoral dele. Então, temos que chegar nessa base com a informação correta para que o parlamentar se sinta confortável para manifestar apoio. Evidentemente, os parlamentares também demandam benefícios para suas regiões e obras. Mas nossa capacidade de atender a isso hoje é limitadíssima, justamente por causa da Previdência — ressaltou Oliveira.

Para o economista José Márcio Camargo, professor da PUC-Rio, a proposta atual de reforma da Previdência, por ser mais restrita, é mais compreensível ao grande público:

— A proposta inicial do governo era muito ampla. Ela atacava todos os pontos, da previdência do setor público à do setor rural. Você não podia fazer um marketing dizendo que ela só serviria para acabar com os privilégios. Agora, pode. A proposta que sobreviveu está concentrada na redução de privilégios.

O ministro do Planejamento criticou o que chamou de “guerrilha de desinformação”, em que “conceitos falsos” são usados por grupos contrários à reforma. E citou um cálculo feito pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip):

— Ele fala que tem déficit na Previdência, mas não na seguridade social. Mas o que é seguridade social? É um conceito abstrato. Quando você faz a conta, tem déficit também na seguridade social. Maior inclusive que o da Previdência. Porque inclui assistência social, saúde, uma série de despesas em que o déficit é maior. Mas eles fazem uma conta malandra e não incluem o pagamento da aposentadoria dos servidores, porque acham que servidor público não é Previdência. Desmascaramos isso.

Para o jornalista Merval Pereira, parte das dificuldades vem da própria incapacidade de Brasília para comunicar a necessidade da reforma à população:

— O governo não consegue transmitir para a sociedade essa coisa fundamental. A reforma proposta trata de desigualdades e acaba com privilégios. Os números são incontestáveis.