O globo, n. 30898, 12/03/2018. Rio, p. 7

 

Muitos gastos, mas pouco investimento

Carina Bacelar e Fábio Teixeira

12/03/2018

 

 

Segurança do Rio tem o 6º maior custo per capita do país, mas folha consome maior parte do orçamento

Apesar da situação caótica na segurança pública, que em fevereiro deste ano resultou na intervenção do governo federal, o Rio é o sexto estado do país em gastos per capita no setor. Por morador, foram R$ 599,73 em 2017. É menos do que Minas Gerais, que ficou em primeiro no ranking, e mais do que São Paulo, que ficou em 12º lugar e, mesmo assim, teve uma taxa de letalidade de 11 mortes para cada 100 mil habitantes em 2016, contra os 37,6 do Rio. Um raio X dessas despesas revela, para especialistas, erros da gestão fluminense. Dados levantados pelo GLOBO, a partir do Portal de Transparência do Rio, mostram que a função segurança consumiu R$ 9,9 bilhões em 2017, mas apenas 0,14% desses recursos foi para investimentos. Enquanto isso, a folha de pessoal não para de crescer.

Para se ter uma ideia, o efetivo da PM antes de começar a série de contratações, a partir de 2010, era de 38 mil homens. Atualmente, a corporação tem 44.276 agentes, 16,5% a mais, embora ainda exista um déficit calculado em cerca de 15 mil. Já a despesa com pessoal mais que quadruplicou: subiu de R$ 2 bilhões em 2007 para R$ 8,23 bilhões ano passado.

— Gastamos no teto da capacidade dos estados e gastamos mal, no sentido de que os profissionais estão sempre insatisfeitos com salários, com toda razão, e o policiamento é insuficiente. Além disso, investe-se muito pouco. É um cenário difícil. E qual é a fórmula? Certamente passa por aumentar os gastos. Mas não adianta nada se os recursos continuarem todos indo para a folha de pagamento — alerta Arthur Trindade, ex-secretário de Segurança do Distrito Federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. — A UPP foi basicamente um investimento em pessoal, tanto que tínhamos policiais até dentro de contêineres, como foi noticiado.

‘BOMBA-RELÓGIO ORÇAMENTÁRIA’

Os dados per capita foram levantados pelo GLOBO e usam como base relatórios enviados pelos estados à Secretaria do Tesouro Nacional. Além de Minas Gerais (que desembolsou R$ 777,12 por habitante), o valor fluminense ficou abaixo do aplicado em Roraima (R$ 762), Acre (R$ 682,71), Mato Grosso (R$ 662) e Mato Grosso do Sul (R$ 630,23). São Paulo, por sua vez, gastou R$ 454,62 por pessoa. Para Gil Castello Branco, secretário-geral do Contas Abertas, a dificuldade em arcar com o custo da segurança não é só do Rio, mas de todos os estados:

— Chama atenção que grande parte deles tenha planejado gastar mais do que efetivamente fizeram ao longo do ano.

Em 2007, os gastos com Segurança Pública no Rio foram de R$ 4,35 bilhões, em valores não corrigidos. Naquela época, as despesas de pessoal abocanhavam 46% desse valor, cerca de R$ 2 bilhões, e os investimentos, 1,29% (R$ 56,24 milhões). Dez anos depois, as despesas chegaram aos R$ 9,9 bilhões. E a folha de pagamento já consumia os R$ 8,23 bilhões de 2017 (83% do total). Os investimentos, por sua vez, que chegaram a representar 6,75% em 2010 (ano em que a política de UPPs levantou voo), fecharam o ano passado com apenas 0,14% (R$ 13,4 milhões), percentual mais baixo da série histórica de dez anos. Neste período, a queda foi de 95,6%. No rastro do corte de investimentos, o estado viu a taxa de homicídios subir.

Mesmo que o grupo responsável pela intervenção tente aumentar os investimentos no setor, a missão será quase impossível, devido ao alto percentual empregado em recursos humanos. Para Arthur Trindade, o Rio armou uma “bomba-relógio orçamentária” ao contratar mais de dez mil PMs para as UPPs.

— Nos estados, em geral, 90% do orçamento com segurança vão para o pagamento de pessoal. No Rio não é diferente. Por isso, não tem muito como diminuir os gastos — afirma o pesquisador.

Para Paulo Corval, professor de Direito Tributário e Financeiro da UFF, a própria intervenção é uma prova de que o modelo de gastos com segurança ancorado na contratação de pessoal alcançou o seu limite.

— Quando as Forças Armadas saírem, imagina o quanto o estado vai gastar se quiser manter o mesmo efetivo que está atuando agora? Impossível. Simbolicamente, a intervenção demonstra o exaurimento da capacidade estatal.

Neste cenário, outras áreas essenciais não tiveram tantos recursos. Os gastos com segurança pública cresceram R$ 5,5 bilhões, em termos nominais, desde 2007. Já a Educação teve acréscimo de apenas R$ 366,3 milhões até o ano passado, e a Saúde, R$ 3,8 bilhões. O setor de Educação — composto basicamente por servidores públicos — gastou, no ano passado, 74% de suas despesas com a folha de pagamento.

Enquanto isso, os profissionais de segurança que atuam nas ruas sentem na pele a falta de investimentos. Um policial militar, que pediu anonimato com medo de represálias, conta que as armas falham na hora dos confrontos e que as péssimas condições dos veículos de serviço tornam qualquer blitz constrangedora para os agentes. Hoje mais da metade da frota está parada por falta de manutenção:

— As viaturas estão caindo aos pedaços, poucas têm condições de patrulhar. As armas não são adequadas à realidade que vivemos. Os meliantes têm armas de grosso calibre, enquanto as nossas muitas vezes falham. Os coletes não estão adaptados à realidade que nós vivemos. Já existem coletes preparados para suportar tiros de calibre .30. Mas nós não temos.

Diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC), da Universidade Federal Fluminense (UFF), Lenin Pires ressalta que o aumento dos gastos com pessoal colabora para uma cultura do enfrentamento nas corporações.

— O que é valorizado nessas agências é o uso da força e a crença de que a gente deve tratar o problema com repressão. Nós tivemos dois momentos muito importantes de investimentos de recursos, que foram os programas Delegacia Legal e, depois, as UPPs. Pensamos que, nesses momentos em que houve investimentos, mudaríamos a forma de agir dessas instituições. Mas isso não ocorreu. A ênfase sempre foi na repressão, e a repressão lida com o trabalho nas ruas.

GASTOS COM MOBILIÁRIO E DECORAÇÃO

Uma análise de quais investimentos receberam mais recursos nesses dez anos também permite apontar a prioridade no patrulhamento, e não em soluções tecnológicas, por exemplo. Entre os dez focos de despesas que mais receberam aportes, quatro se referem à aquisição de veículos, totalizando gastos de R$ 828,5 milhões. O viés tecnológico aparece só no 9º lugar da lista: R$ 88,8 milhões para “equipamento e aparelhos de som, imagem e de telecomunicações”. Enquanto isso, R$ 40,6 milhões foram investidos em mobiliário em geral e artigos de decoração, enquanto outros R$ 18,3 milhões foram para aluguéis.

O GLOBO procurou as pastas que respondem pela maior parte dos programas da Função Segurança Pública. A Secretaria de Segurança não se pronunciou. O Corpo de Bombeiros disse que seus investimentos são custeados por um fundo próprio e, desde 2007, a arrecadação é integralmente revertida para o “aprimoramento profissional e para a compra e manutenção de equipamentos”.