O globo, n. 30895, 09/03/2018. País, p. 6

 

Da recuperação no colégio à gestão financeira do trabalho

Vinicius Sassine

09/03/2018

 

 

APADRINHADO NA ESPLANADA -b Jovem de 19 anos é colocado pelo PTB para coordenar e autorizar pagamentos de R$ 473 milhões a fornecedores

Mikael Tavares Medeiros está sempre de bom humor quando chega ao trabalho. No começo da tarde, ao adentrar o quarto piso do edifício anexo do Ministério do Trabalho para um expediente que costuma durar algumas horas, distribui sorrisos e cumprimentos a seus subordinados e à sua secretária. Acomoda seu paletó na sala 444, onde, desde 28 de dezembro, coordena e autoriza pagamentos a fornecedores da pasta, coisa de R$ 473 milhões por ano.

Mikael tem 19 anos. De idade, não de ministério. Até outro dia, fazia troça nas redes sociais por ter ficado em recuperação no último ano do Ensino Médio. “qm passa direito é busao kakakwkaka”, escreveu em uma delas. Mikael estava desempregado; entrou há pouco na faculdade. Sua experiência profissional até ser nomeado no Ministério do Trabalho: vendedor de óculos numa loja, indicado pelo pai.

Ele começou a trabalhar na pasta em outubro de 2017. Foi nomeado coordenador de documentação e informação pelo então ministro Ronaldo Nogueira, do PTB. Um cargo tão burocrático como o nome sugere. Mas que não paga tão mal: R$ 5,1 mil brutos, por mês. Dois meses depois, recebeu a missão de ser gestor financeiro de um setor fundamental do ministério. Tornou-se “responsável pelos atos necessários à execução orçamentária, financeira e patrimonial” dos pagamentos da Coordenação Geral de Recursos Logísticos. É a turma que libera dinheiro dos contratos da pasta. A atribuição da função de gestor financeiro foi assinada pelo então secretário-executivo da pasta, Helton Yomura. Quando saiu a nomeação, Yomura já era ministro interino, apadrinhado por Roberto Jefferson desde que a nomeação da filha deste, Cristiane Brasil, naufragou.

Ninguém assume a paternidade da nomeação de Mikael, mas ela apresenta claramente conotações políticas. Seu pai, um policial, preside o PTB numa cidade próxima a Brasília. É aliado do deputado Jovair Arantes (GO), líder do partido na Câmara. Sua mãe, uma diarista, recebe Bolsa-Família.

O pai do rapaz é o delegado da Polícia Civil de Goiás Cristiomario de Sousa Medeiros. Ou Delegado Cristiomario, como se apresenta aos eleitores de Planaltina de Goiás e região.

A reportagem conversou com o delegado em seu gabinete na delegacia em Planaltina. Ele negou ter feito a indicação do filho para o cargo no ministério, disse que não teria problema em fazê-la e confirmou ter sido o responsável por apresentar Mikael aos próceres do PTB:

— Não sei qual cargo ele ocupa lá. Sei que ele esteve passando por gabinetes e que participou de reuniões comigo no PTB. Eu inseri ele no partido. Sugeri a ele sair procurando. Talvez tenha conseguido alguma amizade.

Segundo Cristiomario, o filho não é filiado ao PTB. Registros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que Mikael está filiado ao Partido da Mulher Brasileira (PMB) desde março de 2016.

— Não me perguntaram em momento algum sobre o cargo. Nem eu liguei para ninguém para que a nomeação ocorresse. Ponho meu filho para trabalhar desde os 16 anos de idade. Aqui na cidade ele era vendedor de óculos numa loja — diz o delegado.

Cristiomario afirma que a indicação pode ter partido de Jovair Arantes.

— Eu espero que não exista nenhuma irregularidade. Sei que ele está no ministério, mas não sabia que tinha virado gestor financeiro. Vou sugerir que ele passe essa gestão financeira para outra pessoa. Se tivesse me perguntado, eu teria falado para não assumir.

A mãe de Mikael, que não vive com o pai do jovem, diz que pouco sabe sobre a vida profissional do filho. Luciana Tavares Dias afirma que a indicação deve ter partido do PTB. Na frente da casa dela no DF, na região do Varjão — um lugar pobre, mal iluminado e cheio de lotes baldios —, um carro estava com um adesivo do “Delegado Cristiomario”.

Até meses atrás, Mikael morava na mesma casa da mãe, segundo ela. Luciana tem outros três filhos e recebe R$ 163 por mês do Bolsa Família. Se a renda do filho funcionário público for incluída, ela não tem direito ao benefício, de acordo com as regras do programa. Luciana confirma que Mikael segue incluído no cadastro do Bolsa Família:

— Eu tento tirar o nome dele há meses, porque ele não mora mais comigo e não me ajuda com dinheiro em casa. Eu preciso do Bolsa Família. Faço diárias três vezes por semana. Estou ligando lá todo dia para excluírem ele.

As mudanças na vida de Mikael foram muito rápidas. Em abril de 2017, quando foi levado à Justiça por policiais militares por portar 13,6 gramas de maconha, o garoto tinha 18 anos de idade e informou estar desempregado.

No dia 23 daquele mesmo mês, Mikael deveria ter comparecido à Justiça, como acertado em audiência que suspendeu por três meses o processo por porte de droga para consumo pessoal. Não apareceu nem atendeu ao telefone. “acho que tô bebendo pouco, queria ter mais dinheiro para aumentar o ritmo”, escreveu numa rede social dias antes.

A portaria que alçou Mikael à função de gestor financeiro foi publicada em 28 de dezembro. A área que ele passou a gerir financeiramente liberou pagamentos já nas horas seguintes.

Naquele dia, O GLOBO publicou uma reportagem que revelou o resultado de uma auditoria até então sigilosa do Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União (CGU). A investigação apontou que o Ministério do Trabalho direcionou uma licitação para contratar a empresa Business to Technology (B2T) e superdimensionou os serviços contratados. Licenças e horas trabalhadas foram superfaturadas e sucessivos alertas emitidos pela CGU, ignorados. Os contratos, destinados a serviços de combate a fraudes com o seguro-desemprego, somavam R$ 76,7 milhões.

No ministério, diversos servidores de carreira se recusavam a fazer pagamentos à B2T, diante dos alertas da CGU para que os repasses fossem interrompidos. A unidade de onde sai o dinheiro é a Coordenação Geral de Recursos Logísticos, na qual Mikael passou a ser o responsável pelos atos de liberação do dinheiro. Um dia após o jovem assumir a função, o ministério emitiu uma ordem bancária com pagamento de R$ 22,49 milhões à B2T.

O Ministério do Trabalho sustenta que Mikael tem “alto grau de responsabilidade”. “Não levamos em conta sua idade, mas sim sua capacidade. Sua nomeação seguiu critérios de conduta ilibada e comprometimento”, diz a pasta, por meio da assessoria de imprensa, sem responder quem o indicou.

Procurado, Mikael não falou com a reportagem.