Correio braziliense, n. 20061, 24/04/2018. Mundo, p. 14

 

Janela para o diálogo 

Jorge Vasconcellos

24/04/2018

 

 

COREIAS » Cúpula histórica entre o ditador Kim Jong-un e o presidente Moon Jae-in, na próxima sexta-feira, pode abrir caminho para um tratado de paz definitivo e para a desnuclearização. Em junho, norte-coreano se reunirá com Donald Trump

A semana começa com as atenções do mundo voltadas para a reunião de cúpula da próxima sexta-feira entre o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, e o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in. O primeiro encontro entre governantes dos dois países em 11 anos é cercado de expectativas sobre a possível assinatura de um tratado de paz para pôr fim à Guerra da Coreia (1950-1953), além de desconfianças a respeito da disposição do regime de Pyongyang para renunciar ao programa nuclear. O desfecho desse diálogo pode indicar os próximos passos nas negociações para a histórica reunião de cúpula entre Kim e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, prevista para junho.

O compromisso da Coreia do Norte com a desnuclearização é a principal condição imposta pelo americano para o prosseguimento das discussões voltadas a uma possível distensão. Ambas as reuniões de cúpula com a participação o líder norte-coreano foram programadas com o objetivo de buscar acordos capazes de evitar o retorno das hostilidades que assustaram o mundo no ano passado, quando sucessivos testes nucleares da Coreia do Norte acirraram ainda mais os ânimos com a Coreia do Sul e os EUA.

Marcado por simbolismos, o encontro entre Kim e Moon vai ocorrer na Zona Desmilitarizada (DMZ), que divide as Coreias. Mais precisamente, em Panmunjon, o mesmo vilarejo sul-coreano onde, 65 anos atrás, foi pactuado o cessar-fogo da Guerra da Coreia. Sem a assinatura de um tratado de paz desde então, os dois países ainda se encontram tecnicamente em guerra.

A viagem de Kim a Panmunjon será a primeira de um líder norte-coreano à parte sul da península desde o armistício. Durante a Guerra da Coreia, segundo a versão oficial norte-coreana, Kim Il-sung, fundador do regime comunista e avô do atual líder, entrou várias vezes em Seul, cidade que caiu em duas ocasiões sob o domínio das forças de Pyongyang.

Diplomacia

Os passos iniciais para a atual fase de distensão na península foram dados durante os Jogos Olímpicos de Inverno, realizados na Coreia do Sul, em fevereiro deste ano. Na ocasião, a irmã do ditador norte-coreano, Kim yo-jong, encontrou-se com Moon Jae-in, e atletas dos dois países participaram dos jogos em equipes conjuntas. Em março, na esteira dos diálogos iniciados com Seul, aliada de Washington, Kim propôs uma reunião de cúpula com Trump, que prontamente aceitou o convite.

Dois avanços, considerados surpreendentes por analistas, lançaram a esperança de uma resolução diplomática das tensões. Na quinta-feira passada, Moon Jae-in anunciou que Kim estaria decidido a promover a desnuclearização de seu país, mesmo sem ter como contrapartida a retirada dos 28,5 mil militares americanos da região. Desde o início do programa atômico, na década de 1990, a Coreia do Norte condicionava o desmantelamento de seu arsenal à saída das tropas dos EUA de território sul-coreano. No dia seguinte, sexta-feira, o ditador enviou novo sinal a Washington: suspendeu os testes nucleares e de mísseis e anunciou o fechamento das instalações de testes atômicos, segundo a agência de notícias sul-coreana Yonhap.

“Eu duvido que sejam tomadas decisões específicas durante a reunião. Nem penso que haverá, em qualquer momento razoável, uma desnuclearização completa. Ou seja, é improvável que o Norte desista de seu programa de desenvolvimento e desmantele as armas que tem agora”, disse ao Correio Peter Moody, professor de relações internacionais da Universidade de Notre Dame, em Indiana (EUA). “Em vez da desnuclearização, o Norte agora pode estar suficientemente confiante de que é capaz de impedir qualquer ação não provocada contra ele e congelar o programa atômico. Os EUA, por sua vez, podem conceder reconhecimento diplomático ao Norte e ignorar tacitamente a posse de armas nucleares pelo regime”, acrescentou Moody.

Para Denny Roy, professor de ciência política da Universidade de Chicago, o verdadeiro interesse de Kim é utilizar a cúpula de Panmunjon para resolver os próprios interesses com os EUA. “Pyongyang tentou, durante décadas, ignorar ou contornar Seul e lidar diretamente com os EUA nas grandes questões da Península Coreana. Portanto, devemos ser extremamente céticos de que Kim  queira algo da reunião com Moon, além de procurar concessões e melhorar sua posição de barganha com Washington”, disse Roy ao Correio.

“Sobre os últimos anúncios de Kim Jong-un, são simplesmente o reconhecimento da realidade, mas os problemas reais estão em como o processo de desnuclearização se desdobrará: com rapidez ou lentidão”, acrescentou à reportagem Stephan Haggard, professor de relações internacionais da Unversidade da Califórnia.

Silêncio na fronteira

Em um gesto de aproximação antes da cúpula de sexta-feira, Seul suspendeu ontem a difusão, por enormes alto-falantes na fronteira, de mensagens de propaganda convocando os soldados norte-coreanos a desertar. Dias antes, Pyongyang anunciou a suspensão dos testes nucleares e do lançamento de mísseis balísticos. “Hoje, começamos a suspender os anúncios por alto-falantes, a fim de reduzir as tensões e criar um clima de paz antes da cúpula intercoreana”, anunciou o Ministério da Defesa. “É uma decisão importante em vias da desnuclearização total da península”, reforçou o presidente sul-coreano, Moon Jae-in. A Coreia do Norte também tem equipamentos de som para difusão de propaganda.

Tensão pré-cúpula

A polícia de choque sul-coreana retirou ontem manifestantes que bloqueavam a estrada no acesso à cidade de Seongju, em protesto contra a instalação de um sistema sofisticado antimísseis fornecido pelos Estados Unidos. Os pacifistas do Sul consideram que o reforço da defesa antiaérea pode alimentar a tensão com o Norte, mas o Ministério da Defesa confirmou o envio do material necessário para a base onde serão instaladas as unidades do sistema conhecido pela sigla Thaad.

 

Pontos de vista

Por Matthew Carlson

Possível pacto de paz

“Provavelmente, Washington não concordaria em retirar as forças da Coreia do Sul. Então, vejo a declaração de Kim Jong-un de que não exigirá a retirada das tropas dos EUA como realista. As negociações com Trump teriam sido canceladas ou não teriam prosseguido até aqui, se o Norte não concordasse publicamente com tal afirmação. É provável que tente negociar isso mais tarde, dependendo de quão forte Pyongyang perceba a sua mão. O Norte e o Sul, provavelmente, se concentrarão no que fazer com a Zona Desmilitarizada. Provavelmente, haverá alguma decisão quanto a um tratado de paz entre as Coreias, mas não estou otimista quanto à desnuclearização. Por que a Coreia do Norte concordaria com ela agora, sem incentivos substanciais? Espera-se que a cúpula abra caminho para as discussões entre Pyongyang e Washington.”

Professor de ciência política da Universidade de Vermont (EUA)

 

Por Peter Moody

Farejamento preliminar

“Se for verdade que Kim Jong-un está decidido a renunciar ao programa nuclear, é interessante. Alguns comentaristas têm compreensões diferentes sobre o que significa a desnuclearização. A definição americana parece implicar inspeções intrusivas, o que poderia dar à Coreia do Norte uma razão para recuar. No passado, Pyongyang afirmou que a desnuclearização deve se aplicar a toda a Península Coreana. Não existem armas nucleares americanas na Coreia do Sul, desde 1992, mas a posição do Norte é de que, enquanto houver soldados dos EUA, isso equivale à mesma coisa. Será que o presidente Moon Jae-in está ouvindo o que quer ouvir, sem prestar atenção às sutilezas? Minha sensação é de que a cúpula intercoreana, assim como a provável reunião entre Kim e Trump, será para farejamento mútuo preliminar.”

Professor de relações internacionais da Universidade Notre Dame (EUA)

 

Um ano de distensão

Aproximação entre as Coreias teve início em janeiro último

1º de janeiro de 2018

Kim Jong-un fala em enviar uma delegação aos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pyeongchang, na Coreia do Sul.

3 de janeiro

A Coreia do Norte chama o Sul por meio de uma linha direta, instalada na Zona Desmilitarizada, pela primeira vez em quase dois anos.

9 de janeiro

Pyongyang concorda em enviar uma delegação para as Olimpíadas de Inverno, nas primeiras negociações bilaterais desde dezembro de 2015.

11 de fevereiro

A irmã de Kim, Kim Yo-jong, conhece o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, durante os jogos, e transmite um convite formal do ditador para que visite a Coreia do Norte.

23 de fevereiro de 2018

O presidente norte-americano, Donald Trump, anuncia novas sanções contra a Coreia do Norte, atingindo empresas de transporte, comércio e embarcações.

6 de março

Autoridades sul-coreanas visitam Pyongyang. Kim admite que o regime está disposto a conversar com os EUA sobre o programa nuclear.

8 de março de 2018

O presidente dos EUA concorda em se encontrar com Kim, após as autoridades sul-coreanas entregarem o convite para uma visita a Pyongyang.

27 de março de 2018

Kim faz a primeira visita a Pequim e se reúne com o presidente chinês, Xi Jinping.

7 de abril de 2018

O diretor da CIA, Mike Pompeo, faz uma viagem secreta à Coreia do Norte e se encontra com Kim durante a Páscoa.

 

Para saber mais

Choque de ideologias

A Coreia era um  só país até a ocupação japonesa, no início do século 20. Com a rendição do Japão ao fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA e a União Soviética dividiram influências sobre o território: os americanos no sul e os soviéticos no norte. O impasse causou a divisão do país.

Depois de várias tentativas de derrubar o governo sul-coreano, a Coreia do Norte invadiu o país vizinho, em 25 de junho de 1950, e conquistou Seul. Em resposta, as Nações Unidas enviaram tropas com a missão de expulsar os norte-coreanos da parte sul da península. Os EUA entraram na guerra ao lado do Sul, ao passo que a China, aliada da URSS, enviou tropas para o Norte. Em 1953, a Coreia do Sul acumulava vitórias militares em um conflito sangrento, que matou cerca de 2,5 milhões de pessoas, a maioria civis. Em julho daquele ano, Washington ameaçou atacar a Coreia do Norte e a China com armas nucleares, caso não houvesse uma rendição. Em 27 de julho, as Coreias assinaram o cessar-fogo proposto pela ONU.

Após o armistício, as tensões continuaram na península, mas sem conflito armado. Ainda hoje, a Coreia do Norte é comunista e a do Sul, capitalista. Na década de 1990, o Norte deu início ao projeto nuclear, em reação à presença de tropas americanas no Sul. As tensões se elevaram. Desde o fim da Guerra da Coreia, houve duas cúpulas entre dirigentes dos dois países, em 2000 e em 2007, ambas em Pyongyang, mas sem avanços.