O globo, n. 30907, 21/03/2018. Rio, p. 8

 

Pela avenida Marielle

Giselle Ouchana e Luã Marinatto

21/03/2018

 

 

Ato contra o assassinato de vereadora e motorista reuniu multidão no Centro

De terno e gravata frouxa no pescoço, o bancário Carlos Morates, de 32 anos, pede um espeto de carne à vendedora. O rapaz saiu diretamente do trabalho para os atos em homenagem à Marielle Franco e ao motorista Anderson Pedro Gomes, primeiro na Candelária e depois na Cinelândia, ambos realizados ontem no Centro. Com um olhar um tanto perdido, ele era uma das centenas de pessoas do cortejo que cruzou a Avenida Rio Branco que, ontem, por algumas horas, ganhou o nome de Marielle, seguida da inscrição: “Vereadora, defensora dos direitos humanos e das minorias, covardemente assassinada no dia 14 de março de 2018”. O protesto emocionante marcou o sétimo dia da morte dela e de Anderson, crime até agora não esclarecida.

— Não votei na Marielle. Até essa história toda, o crime, eu mal havia ouvido falar nela. Mas fiquei tocado. Ela, como eu, foi uma negra que nasceu na favela e fugiu das estatísticas. Brigava por nós. Morremos todos um pouco — falou Carlos.

A fala é interrompida pela ambulante, que pergunta se também pode “dar entrevista”.

— Só sei que essa mulher era guerreira. Estou aqui para trabalhar, mas respondo toda vez que chamam o nome dela — disse Louaine Cruz, de 56 anos, moradora do Complexo do Alemão, para, longo em seguida, repetir, com força, a palavra de ordem que passou a ser dita toda vez que o nome da vereadora é pronunciado: — Presente!

“ESTADO INCOMPETENTE”, DIZ VIÚVA

Também nascida no Alemão, a viúva de Anderson, Ágatha Arnaus Reis, protagonizou, ainda na Candelária, um dos momentos mais emocionantes da noite. Sem qualquer experiência como militante, como ela própria disse ao microfone, a jovem de 26 anos subiu no carro de som para pedir justiça.

— Meu marido não era engajado. Ele representa cada trabalhador, cada pai de família. Representa mais uma vítima desse estado incompetente. Precisamos fazer valer os nossos direitos. Sou como cada um de vocês e meu marido também era. Depois dele e da Marielle tiveram mais quantos? — bradou Ágatha, com a voz embargada. Ao que o público respondeu: “Rio de Janeiro, presente!”

Na Cinelândia, houve o ato inter-religioso. Na esquina com a Rua Miguel Couto, a placa da Rio Branco foi coberta por outra, com o nome de Marielle Franco.

— Estou com sangue nos olhos para buscar justiça. Não vou descansar enquanto isso não for resolvido. Sou professora, não tenho experiência nenhuma na política, mas sempre lutei pelos direitos humanos, assim como minha irmã — discursou Anielle Silva.

Além das menções a Marielle e Anderson, as principais palavras de ordem eram contra o presidente Michel Temer, o prefeito Marcelo Crivella e a intervenção federal na segurança pública do estado, da qual a vereadora era forte opositora. O protesto contou com lideranças negra e LGBT, duas das bandeiras da vereadora.

— É um momento emocionante, mas também muita revolta. Nós, mulheres negras, passamos por tantas decepções e, quando temos uma representante, alguém vem e cala a voz dela. É como se a gente não pudesse nunca ocupar um lugar de poder — afirmou a advogada Márcia Moura, de 45 anos, que ajudou a carregar a faixa que abria a manifestação.

Na Cinelândia, a Orquestra Música pela Democracia se apresentou num palco em frente à Câmara de Vereadores. No repertório, canções de Geraldo Vandré (“Para não dizer que não falei das flores”), Chico Buarque (“Cálice” e “Apesar de você”) e Aldir Blanc e João Bosco (“O bêbado e a equilibrista”). Abraçadas, mãe e filha foram às lágrimas entoando a letra de Vandré.

— Canto pra ela desde novinha, sempre que falo sobre minha luta contra a ditadura, embora fosse muito jovem — disse a funcionária pública Rita Madd, de 56 anos, ao lado de Bruna, de 20.

Diretora da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck acompanhou toda a manifestação:

— O Brasil é um dos países mais perigosos para quem luta por direitos.

Em outras capitais do país, como São Paulo, Porto Alegre, Recife e Salvador, também houve homenagens a vereadora e a seu motorista. Em Lisboa, assim como em outras cidades no exterior, também houve protestos. Marielle também foi tema de reportagem do jornal americano “The Washington Post”, em que foi citada como “símbolo mundial”. Em sua conta no Instagram, a atriz Viola Davis, vencedora do Oscar no ano passado, publicou uma foto de Marielle. “Eu acabei de ler sobre essa mulher corajosa”, escreveu Viola. “Estou lutando com vocês, Brasil. Viva Marielle e Anderson”.