O globo, n. 30911, 25/03/2018. País, p. 8

 

Água de açude tem toxinas perigosas

Ana Lucia Azevedo

25/03/2018

 

 

Contaminação ligada a esgoto é descoberta na Paraíba e atinge fígado e sistema nervoso

O fundo quase seco de açudes e reservatórios do Nordeste não traz só desespero. Traz doença. Cientistas descobriram micro-organismos e toxinas capazes de causar malformações e distúrbios no fígado e no sistema nervoso em água coletada no auge da seca histórica que assola o semiárido desde 2012. O estudo foi realizado na Paraíba, mas os pesquisadores alertam para o risco de a mesma situação ocorrer em outros estados.

“Ocorrência de cianobactérias perigosas na água potável de uma região severamente impactada pela seca na região semiárida” é o título autoexplicativo do estudo, publicado este mês no respeitado periódico “Frontiers in Microbiology”. Os pesquisadores — de Rio de Janeiro, Paraíba e São Paulo — coletaram água de cinco açudes. Todos na região metropolitana de Campina Grande, na Paraíba. O maior deles, Boqueirão, fornece água para cerca de 1 milhão de pessoas em 19 municípios do sertão. A coleta foi realizada entre setembro e outubro de 2016, num dos piores períodos da seca. Boqueirão chegou a menos de 3% de seu volume na ocasião.

— Encontramos nessa água concentração alarmante de cianobactérias e das toxinas que elas produzem. Isso torna a água imprestável para consumo humano. Testamos a água em embriões de peixes e 60% deles morreram. Houve uma incidência de 60% de malformações. Deformações no coração, na coluna, na pigmentação, na boca. Danos no fígado e complicações neurológicas. É um alerta de que a água precisa de monitoramento, principalmente nos períodos secos ou quando há muita poluição. O tratamento convencional não elimina as cianobactérias e as toxinas, presentes no esgoto — explica o coordenador do estudo, Fabiano Thompson, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Peixe não é gente, mas seus embriões são considerados um bom modelo para testar a toxicidade das cianobactérias. “Eles são um indicador do que pode acontecer”, observa o cientista. As cianobactérias são micro-organismos que proliferam com o calor em água rica em nutrientes, como fósforo. Os nutrientes vêm do esgoto lançado nos reservatórios. Com a seca, o volume de água diminui e os nutrientes ficam concentrados. O fundo dos açudes se transforma numa sopa tóxica de característico tom azulado, resultado da proliferação das cianobactérias. Hoje, com as chuvas e a água da transposição do São Francisco, há um pouco mais de água no Boqueirão, que está com 16,61% de sua capacidade. Mas água de má qualidade é um problema crônico e não só na Paraíba , destaca Thompson.

A ORIGEM DE MUITOS MALES DO BRASILEIRO

A falta de saneamento está por trás de boa parte das doenças infecciosas que afetam o brasileiro. Sejam diarréias e hepatites, devido ao consumo de água contaminada. Ou dengue e zika, por meio dos mosquitos que proliferam no esgoto. O estudo foi realizado para investigar uma possível hipótese para a maior frequência de microcefalia e outras malformações associadas à zika em bebês do sertão. A médica Adriana Melo, uma das maiores especialistas em zika no mundo e pioneira no estudo da doença, suspeitava de uma associação com água de péssima qualidade da região.

— Não podemos dizer ainda que há uma relação. Os dados são preliminares para isso. Mas podemos dizer que a água testada não tinha qualidade para consumo — frisa Melo, uma das autoras do estudo.

Thompson acrescenta que as toxinas das cianobactérias podem se acumular no organismo e causar danos progressivos ao DNA. “Ninguém sabe o que acontece com o organismo de pessoas submetidas por décadas a beber água com toxinas. Podem ocorrer danos sem que a verdadeira causa, as toxinas, seja identificada. Podemos estar diante de uma epidemia oculta”, observa Thompson. O primeiro estudo a documentar o envenenamento por cianobactérias associado aos reservatórios secos foi realizado pelo grupo de Sandra Azevedo, da UFRJ. Em 1996, ela descobriu que a morte de 76 pessoas numa clínica de hemodiálise de Caruaru, em Pernambuco, fora causada por toxinas de cianobactérias. Elas estavam na água usada pela clínica, trazida por caminhões pipas.

O grupo desenvolve duas tecnologias para eliminar cianobactérias. A primeira tem custo quase zero, para que possa ser usada por comunidades rurais. Os cientistas descobriram que a moringa elimina cianobactérias. Com o apoio da instituição britânica Engineering and Physical Science Research Council, eles investigam também a moringa na eliminação de coliformes fecais. Em testes, bastaram duas sementes por litro para limpar a água. A outra tecnologia é voltada para os reservatórios. Associada à Universidade Federal do Ceará e a universidades britânicas, Azevedo analisa a capacidade despoluente do dióxido de titânio em nanopartículas. Com a ação do sol, as nanopartículas degradam as toxinas. O método será testado no reservatório do Gavião, em Fortaleza, diz Sandra Azevedo.

SALGADO, SÃO FRANCISCO CAUSA HIPERTENSÃO

Doenças associadas à água afetam também o São Francisco. Ele já não bate mais "no mei do mar", como cantava Luiz Gonzaga em "Riacho do Navio". Junto à foz, o Velho Chico está cada vez mais salgado porque o mar é que invade o rio. Com a seca e a redução recorde do volume dos reservatórios dos últimos anos, a vazão do rio foi reduzida. Sem força, ele é que passou a ser invadido. Até o lençol freático foi salinizado e a população pagou com a saúde. Aumentaram os casos de hipertensão em comunidades do Baixo São Francisco.

Este mês a água estava salobra em Penedo, Alagoas, a cerca de 60 quilômetros da foz do São Francisco. Segundo um estudo da Universidade Federal de Alagoas, no ano passado, em certas localidades de Piaçabuçu, na foz do rio, o nível de sal na água chegou a cerca de 27 gramas por litro. O limite considerado máximo tolerável de salinidade é de 0,5 grama por litro.