O globo, n. 30911, 25/03/2018. País, p. 9

 

Poluição impede que Rio use metade do volume de água de seus principais rios

Danielle Nogueira

25/03/2018

 

 

Tratamento convencional é inviável. Estado também gasta muito para processar esgoto, o que eleva consumo e deixa conta mais alta

O estado que leva rio no nome maltrata suas águas. Com a terceira maior população do país, o Rio de Janeiro está no topo do consumo per capita de água, reflexo da má gestão e da falta de manutenção na rede de abastecimento, das ligações clandestinas, bem como do mito da abundância e da água barata, que leva os fluminenses a não se preocuparem em poupar um bem cada vez mais escasso. Não bastasse o desperdício, a poluição dos recursos hídricos é disseminada: 48% dos trechos dos 140 rios monitorados pelo Inea, o órgão ambiental estadual, são impróprios para o tratamento convencional. É tanta sujeira que metade da água captada para o sistema Guandu é usada para tratar esgoto. O resultado é que acabamos pagando mais caro pela água que chega a nossas torneiras.

Segundo dados do Ministério das Cidades, o consumo médio por habitante no Estado do Rio foi de 248,3 litros por dia em 2016, bem à frente do verificado nos dois estados mais populosos do país — São Paulo (166 litros) e Minas Gerais (155 litros) — e acima da média nacional, de 154 litros. A conta considera o volume de água consumido por pessoas e empresas dividido pelo número de habitantes do estado, que alcançou 16,7 milhões naquele ano. Também inclui a água distribuída por rede a esses consumidores, excluindo as captações diretas nos rios por indústrias, por exemplo.

Uma das principais causas que inflam o consumo fluminense é a deficiente manutenção da tubulação que abastece a maior parte do estado, na avaliação de Paulo Canedo, do Laboratório de Recursos Hídricos da Coppe/UFRJ. Ele explica que há dois tipos de manutenção: a reparação de vazamentos e a preventiva. Nenhum deles, diz, é feito a contento pela Cedae, que atende 64 dos 92 municípios do Rio. Outro problema é a cobrança estimada e não por medição efetiva do consumo. Há muitos prédios e residências no Rio que não têm hidrômetro. O consumo é estimado pela concessionária, com base no número de cômodos.

— Isso mostra uma má gestão do serviço. Ao estimar, e não medir de fato, o consumo pode ser superestimado ou mesmo subestimado. Muitas perdas acontecem aí. Elas se somam aos vazamentos do sistema, que não são poucos e evidenciam a manutenção insuficiente — afirma Canedo. — Há ainda os ‘gatos’. Como a pessoa não paga, não se preocupa em poupar.

Segundo a Cedae, os casos mais frequentes de ‘gatos’ ocorrem em lava-jatos, pizzarias, restaurantes, condomínios de alto padrão, fábricas e galpões de empresas. Mesmo quem paga a conta em dia não é estimulado a fazer o uso racional da água, porque em seu prédio não há hidrômetro ou porque o hidrômetro não é individualizado. A conta costuma ser coletiva e embutida no boleto do condomínio. Um vizinho que consome pouco e outro que consome muito pagam a mesma coisa. Apenas construções mais recentes têm hidrômetro individual e contas de água separadas por condômino.

 

SARAPUÍ, O RIO ‘CASAS BAHIA’

Outro problema que o Rio enfrenta e que contribui para elevar o consumo da água é o alto índice de poluição dos rios. O Inea acompanha, sistematicamente, 140 rios distribuídos em 192 pontos de monitoramento. A média dos últimos quatro anos mostra que quase em metade dos pontos a água estava imprópria para o tratamento convencional.

O Rio Sarapuí, que corta cinco municípios da Baixada Fluminense e deságua na Baía de Guanabara, é um dos classificados de má qualidade. O GLOBO navegou pelo rio (assista ao vídeo em www.oglobo.com.br) e pôde constatar a presença de enorme quantidade de lixo, de resíduos domésticos a móveis boiando. Não por acaso, os moradores das redondezas o apelidaram de “Rio Casas Bahia”, onde se encontra de sofá a computador. Há ainda denúncia de pescadores de vazamento de chorume do aterro de Gramacho, em Duque de Caxias. Próximo ao local, o rio borbulha, tal a quantidade de matéria orgânica decomposta.

— Esse mangue sustentava 15 famílias. Com o vazamento de chorume não tem mais caranguejo. A gente tem que ir pra outro lugar pra assegurar o sustento — diz Gilciney Lopes Gomes, presidente da colônia de pesca de Duque de Caxias, apontando para o manguezal às margens do Sarapuí.

A prefeitura de Caxias informou que o aterro de Gramacho está desativado e que a responsável por sua administração é a Gás Verde, que deveria tratar os resíduos. A prefeitura já multou a companhia em mais de R$ 1 milhão pelo despejo de chorume no Sarapuí e na Baía de Guanabara. O GLOBO não conseguiu contato com a Gás Verde.

Os rios fluminenses são tão sujos que o projeto para limpeza e desassoreamento de 23 deles com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi chamado oficialmente de PAC Valões. Os 23 rios contemplados no programa são afluentes do Sarapuí. Segundo o Ministério das Cidades, o projeto, que recebeu R$ 89 milhões, foi concluído em 2015. Mas quem passa pela região hoje não percebe melhora.

O mototáxi Juarez Marcelino mora em frente ao Sarapuí, no bairro de Chatuba, em Mesquita. Perdeu a conta de quantas vezes sua casa alagou porque a quantidade de lixo no rio é tamanha — a coleta é feita duas vezes por semana — que ele transborda quando chove. As margens também estão erodindo. Juarez tenta como pode fazer uma barreira com pneus para conter a erosão.

— Tô vendo a hora em que vou ter que me mudar — lamenta o mototáxi.

O grande vilão dos rios fluminenses é o esgoto doméstico: só 33,57% são tratados, contra 44,92% no país. Isso leva a Cedae a buscar água mais longe e a gastar mais no tratamento dos efluentes.

— Com falta de saneamento, 50% da água captada do Paraíba do Sul para o sistema do Guandu são usadas para tratar esgoto. É o mesmo que jogar água no lixo — diz Carlos Nobre, do Inpe, um dos mais renomados climatologistas do país.

A Cedae frisou que nos municípios onde atua o índice de tratamento de esgoto foi acima de 60% em 2016, que 90% da água são tratados e que investiu cerca de R$ 200 milhões em manutenção em 2017. Quantos às perdas que tanto inflam o consumo de água no estado, a concessionária disse que cerca de 10% são perdas por vazamentos e água produzida mas não distribuída por ser usada em operações das estações. O restante são perdas comerciais, como ‘gatos’ e fraudes.