O globo, n. 30911, 25/03/2018. Rio, p. 15

 

Investigações revelam redes de corrupção e tráfico nas cadeias

Chico Otavio e Daniel Biasetto

25/03/2018

 

 

Sistema prisional é considerado um dos maiores desafios da intervenção federal no estado

Por trás dos muros altos e das grades do sistema prisional do estado, o general Walter Braga Netto encontra um dos maiores desafios da intervenção federal na guerra contra a violência no Rio de Janeiro. Evidências obtidas até agora em pelo menos três investigações em andamento revelam que as cadeias fluminenses, dominadas pela corrupção, funcionam como escritórios do crime, onde os presos, principalmente os chefes de facções, encontram um terreno fértil para comandar o mercado das drogas. Um depoimento feito aos promotores mostra o tamanho do problema: traficantes acessaram o WhatsApp, dentro de uma cela, e decretaram pena de morte para um rival.

As três investigações — uma delas conduzida pelo Ministério Público Federal e as outras duas, pelo Ministério Público estadual — desvendam um conjunto de violações que vai de fraudes em contratos públicos, incluindo a compra de quentinhas para presos, a esquemas de entrada de celulares, armas e drogas nas celas. Nada escapa da trama de corrupção formada nos presídios. E o pior: as quadrilhas favorecidas apostam no caos. Quanto mais celas superlotadas, comida ruim, sujeira e atrasos nos pagamentos, mais combustível para o negócio desonesto. A desordem faz grupos faturarem alto com a venda de facilidades.

 

EX-SECRETÁRIO É UM DOS DETENTOS

As cadeias fluminenses abrigam 51 mil detentos e têm uma taxa de ocupação de 176,6%, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (junho de 2016). Um dos presos é o coronel da PM César Rubens Monteiro de Carvalho, que foi secretário estadual de Administração Penitenciária durante o governo Sérgio Cabral (2007-2015). Ele é acusado de comandar uma máfia que desviou recursos do esquema de fornecimento de pães ao sistema. Seu sucessor, o também coronel da PM Erir Ribeiro das Costa Filho Ribeiro, foi afastado judicialmente do cargo em janeiro, após envolvimento com mordomias oferecidas a Cabral e aliados na Cadeia Pública José Frederico Marques, em Benfica.

A queda da cúpula da Secretaria de Administração Penitenciária, determinada pela Justiça fluminense a pedido do Ministério Público estadual, removeu os obstáculos que impediam investigações profundas, afirmam promotores. E foi num clima conturbado, instalado em meio à devassa, que o delegado da Polícia Civil David Anthony, ex-corregedor-geral do Detran, assumiu a pasta no dia 24 de janeiro deste ano. Confirmado no cargo depois da intervenção, ele recebeu apoio de Braga Netto para iniciar uma série de vistorias nas quase 50 unidades prisionais do estado. Em menos de dois meses, já apreendeu nas celas, entre outros ilícitos, 700 celulares, 3,8 mil papelotes de cocaína, quatro granadas e três balanças — sinal da existência de bocas de fumo nas unidades.

Mas David Anthony está convencido de que não adianta retirar os celulares em operações isoladas porque, no dia seguinte, os aparelhos estão de volta. É preciso atacar os esquemas de acesso. Para combater a corrupção no sistema, ele anunciou que a Secretaria de Administração Penitenciária terá, a partir de agora, uma corregedoria geral sob comando de um delegado federal, cujo nome mantém em segredo. Esse policial terá sob o seu guarda-chuva o setor de inteligência do órgão, que produzirá informações não apenas sobre a conduta de agentes penitenciários, mas também sobre o que circula dentro das celas e se reflete nas ruas do estado.

— A cadeia fala, e eu quero escutá-la — disse David Anthony.

Uma das Promotorias de Investigação Penal do Ministério Público estadual já conhece boa parte do que David Anthony quer ouvir. Ao abrir um procedimento de investigação, promotores alegaram a necessidade de apurar “a prática de crimes contra a administração pública e de organização criminosa, além de conexos, cometidos por agentes públicos da secretaria que, por sua vez, mantêm relações estreitas e espúrias com milicianos e presos de diversas facções criminosas, que possuem elevada periculosidade”.

De acordo com o MP-RJ, o objetivo do esquema “é obter vantagens indevidas envolvendo a permissão para a exploração de cantinas, a própria exploração de cantinas com venda de produtos proibidos ou permitidos, mas por preços exorbitantes (ofendendo o próprio edital de licitação), assim como permissionários laranjas, licitação de quentinhas, transferência de presos perigosos abastados, tais como líderes de facções criminosas, milícias, entre outros, venda de comida como restos (mongonga), reciclagem de quentinhas, ingresso de produtos nas celas e fuga de presos”.

Diariamente, são servidas cerca de 150 mil quentinhas aos presos. O esquema, dominado por um cartel de fornecedores, é outro foco de corrupção. Os sinais foram dados pelo ex-presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Jonas Lopes de Carvalho. Em delação premiada, ele contou que, com a ajuda do ex-presidente da Assembleia Legislativa Jorge Picciani (PMDB), destinou R$ 160 milhões do Fundo de Modernização do TCE para compra emergencial de quentinhas para presos e jovens infratores. Da verba, R$ 6 milhões serviram para o pagamento de propina.

Desde setembro de 2002, quando mataram o traficante Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, e outros três presos em Bangu 1, não há uma rebelião no estado. Porém, para o MP-RJ, esse longo período de paz só encontra explicação em duas práticas que correm soltas no sistema: corrupção e condescendência. Sem transparência e normativas claras, como a classificação de presos, impera, na rede de unidades prisionais do Rio, a política do “liberou geral”, suspeitam os promotores.