O globo, n. 30909, 23/03/2018. Rio, p. 19
Rastros de ódio
Gabriel Cariello e Marco Grillo
23/03/2018
Publicação em site de opinião política impulsionou onda de boatos envolvendo Marielle Franco
O rastro da campanha difamatória nas redes sociais contra Marielle Franco, assassinada na semana passada, aponta que um site de opinião política ampliou de forma decisiva a repetição de falsas acusações contra a vereadora do PSOL. Dados colhidos pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e uma investigação feita pelo GLOBO traçaram o caminho das fake news de maior repercussão sobre o assunto. Até ontem, o link do Ceticismo Político havia sido compartilhado mais de 360 mil vezes no Facebook, ocupando o primeiro lugar entre as publicações que abordaram o boato de ligação da vítima com o crime organizado — seja de maneira caluniosa ou em tentativas de rebater a acusação.
No dia seguinte ao crime, boatos começaram a se espalhar em grupos de WhatsApp por meio de textos, áudios e memes. Por volta do meiodia de sexta-feira, apareceram os primeiro tuítes relacionando Marielle ao traficante Marcinho VP e à facção Comando Vermelho. Quatro horas mais tarde, o site Ceticismo Político publicou um texto que teve papel fundamental na disseminação das falsas acusações. O link foi divulgado no Facebook, e, pouco depois, o Movimento Brasil Livre (MBL) replicou a mensagem, ampliando ainda mais a repercussão.
No Twitter, em três dias (entre sexta-feira passada e o último domingo), a informação divulgada pelo site gerou mais de um milhão de impressões — um conceito que leva em conta o número de vezes que a mensagem aparece na linha do tempo dos usuários do microblog. A rede de boatos formada no dia em que o Ceticismo Político publicou seu texto envolveu cerca de 4 mil usuários do Twitter, segundo o Labic.
O Ceticismo Político usou como base uma reportagem da colunista Mônica Bergamo, do jornal “Folha de S. Paulo”, sobre um comentário de uma desembargadora publicado no Facebook a respeito de boatos que circulavam no WhatsApp. O texto publicado pela “Folha” citava o que havia sido escrito por Marilia Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio, e informava que um grupo de advogados tinha se mobilizado para que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se pronunciasse sobre o caso. O Ceticismo Político, no entanto, subverteu o texto original e deu um novo título: “Desembargadora quebra narrativa do PSOL e diz que Marielle se envolvia com bandidos e é ‘cadáver comum’”. Ao citar a reação dos advogados, o site afirmou que se tratava de manifestação da “extrema esquerda”.
— A publicação do Ceticismo Político foi a que teve a maior influência no debate — diz o pesquisador Fábio Malini, coordenador do Labic e autor do levantamento.
INTERAÇÕES COM O MBL
O Ceticismo Político é um site administrado por Luciano Henrique Ayan — não há fotos dele nem referências a esse nome em bancos de dados públicos. O MBL afirma que não é responsável por administrar o perfil de Ayan e que não o conhece, mas interações nas redes sociais entre o grupo e o responsável pelo site evidenciam uma proximidade entre as duas partes. Quatro horas depois de o Ceticismo Político publicar a suspeita sobre Marielle, o MBL replicou a publicação no Facebook, com um comentário igual ao do texto original: “Isso é complicado. Bem complicado...”. Antes de ser apagada, a publicação havia alcançado 33 mil compartilhamentos.
Em 2016, no Facebook, o MBL publicou um post em que divulgava um texto de Ayan escrito para o blog do movimento. No Twitter, o MBL já replicou mensagens de Ayan, e o núcleo do grupo em Campinas republicou uma postagem em que ele criticava o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, por ter pedido a quebra de sigilo bancário do presidente Michel Temer. Em outubro do ano passado, um dos integrantes do grupo endossou uma mensagem de Ayan que divulgava uma proposta para acabar com a Lei Rouanet.
O GLOBO perguntou ao MBL por que o grupo publica conteúdos de Luciano Ayan mesmo alegando não conhecê-lo:
— Porque a gente prefere compartilhar o que bem entende e prefere acreditar na mídia independente do que no GLOBO — respondeu Renato Battista, um dos coordenadores do grupo.
Luciano Ayan tem o domínio ceticismopolitico.org desde novembro de 2017. O site está registrado por uma empresa com sede na Dinamarca, usada para manter oculto o nome verdadeiro do proprietário do domínio. Ayan já usou o artifício em outras ocasiões. Antes, ele manteve o Ceticismo Político com outro endereço — o ceticismopolitico.com. Na ocasião, o domínio estava registrado por uma empresa do Canadá, também utilizada para esconder o proprietário real do site.
A atuação de Ayan é motivo de controvérsia na internet antes mesmo da criação do Ceticismo Político. Em 2004, quando a rede social mais popular era o Orkut, Ayan era apontado como dono de comunidades que estimulavam polêmicas. Sem revelar sua real identidade, Ayan não exibe fotos em suas contas nas redes sociais. Além da página do Ceticismo Político no Facebook, que tem 105 mil seguidores, ele mantém o perfil Luciano Henrique Ayan, com cerca de 2,4 mil seguidores.
EMOÇÃO E INCERTEZA
O pesquisador Fábio Malini explica que a viralização de conteúdos costuma estar relacionada a dois aspectos que ficaram evidentes na morte de Marielle: a emoção que tomou conta das pessoas e a incerteza sobre o episódio.
— A viralização tem a ver com a carga emocional. Em casos de muita comoção, as pessoas se ligam ao episódio e compartilham mais conteúdo. A emoção leva ao engajamento. Muitas vezes, as pessoas compartilham informação sem checar, informações distorcidas, porque estão envolvidas mais emocionalmente do que cognitivamente.
A atuação de perfis falsos ajuda a impulsionar o debate nas redes, mas, segundo Malini, os boatos e mentiras ganham força por quem “cai no trote” e não checa a informação:
— Há usuários robotizados, os fakes ou os bots humanos, que publicam conteúdos em diferentes perfis. Mas, em geral, a força do boato vem de pessoas que caem no trote e carregam efeito de verdade. Acontece muito em casos de incerteza: não se sabe quem matou, não se sabe quem morreu, então o tema é potencializado.
Ayan não respondeu aos contatos do GLOBO feitos por e-mails.