O globo, n. 30918, 01/04/2018. Rio, p. 20

 

Marielle, uma história fora da curva na Maré

Fábio Teixeira

01/04/2018

 

 

No complexo de favelas da Zona Norte, onde vereadora foi criada, apenas 0,05% da população tem mestrado

A vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada no Rio em 14 de março, é o que estatísticos chamam de ponto fora da curva. O Conjunto Esperança, onde foi criada, é uma das 16 comunidades do Complexo da Maré que tem indicadores sociais muito aquém aos da média da cidade. Uma análise feita pelo GLOBO, a partir de informações do Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil, das Nações Unidas, e dados da ONG Redes da Maré, mostra que Marielle foi um exemplo de superação, ao fazer parte de 0,05% de moradores da favela com mestrado. Além disso, alcançou uma condição socioeconômica acima da média da população do Rio.

“UMA LUTA HISTÓRICA”

Na capital, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) é 0,799, considerado alto — quanto mais perto de 1, melhor. Na Maré, a média é 0,686. Criada na comunidade, desde o ano passado a vereadora morava na Tijuca, que tem um dos maiores IDHMs da cidade: 0,941. E Marielle superou a renda média da população do Rio (R$ 1.492,63) e da Maré (R$ 527,58), ao receber salário bruto de R$ 18.991,68, o que dá aproximadamente R$ 14 mil líquidos.

O IDHM é um indicador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), formado por dados de renda, longevidade e educação. Ele mostra que Marielle se descolou da realidade da maior parte dos moradores da Maré, o que aconteceu antes ainda de ela se formar socióloga pela PUC-Rio: a barreira foi ultrapassada quando terminou o ensino médio.

Em 2010, no Rio, 45,91% da população entre 18 e 20 anos tinham ensino médio completo. Na Maré, eram 23,45%. O complexo hoje abriga 46 escolas, mas apenas três unidades estão voltadas para esse segmento: o Ciep Professor Cesar Pernetta, a Escola Municipal Bahia e o Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, inaugurado em março deste ano. Diretor da Redes da Maré, Edson Diniz diz que a melhoria no ensino seria um divisor de águas:

— Essa é uma luta histórica. Temos uma demanda muito grande, mas as duas escolas que existiam (agora são três) não dão conta. Isso dificulta muito o acesso ao ensino médio. O morador da Maré começa a trabalhar antes de chegar à faculdade. Se não tem escolas próximas, ele pode não avançar.

Para completar o ensino médio, Marielle teve aulas noturnas no Colégio Estadual Professor Clóvis Monteiro, em Manguinhos. Um censo de 2013 da Redes da Maré revela que, dos 139 mil habitantes, 85,9% tinham o ensino fundamental completo. Outros 29,6% tinham também o nível médio. Só 2,4% se formaram na faculdade. Em 2010, o índice era 1,9%. E apenas 0,05% dos moradores fizeram mestrado, que Marielle concluiu em 2014, na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Diniz, que foi professor de história da vereadora no pré-vestibular comunitário que ela cursou na Maré, recorda:

— O pai tinha um pequeno comércio perto do pré-vestibular. Quem chega ao curso costuma ter um conhecimento melhor. Mas concluir o mestrado é uma vitória, é chegar a um nível que quase ninguém chega.

As favelas da Maré são controladas por pelo menos três facções. Segundo a Redes da Maré, em 2017 foram 35 dias sem aulas, devido a operações policiais, cerca de 17% do ano letivo. Para Eliana Silva, diretora da ONG, a violência é outro desafio:

— Se a tendência de 35 dias sem aula por ano for mantida, ao fim do ensino fundamental o estudante da Maré terá um ano e meio a menos de escolaridade.