O globo, n. 30930, 12/04/2018. Economia, p. 21

 

Crise afeta mais os pobres

Cássia Almeida

12/04/2018

 

 

Desigualdade sobe em todas as regiões em 2017, menos no Sudeste. No país, fica estacionada

O Brasil, um dos 15 países mais desiguais do mundo, viu a concentração de renda ficar inalterada em 2017, e os mais pobres foram mais afetados do que os ricos no ano passado. O Índice de Gini — que, quanto mais próximo de um, mostra que a renda é mais concentrada — ficou em 0,549, o mesmo de 2016. O agravante foi que apenas na Região Sudeste houve queda nesse indicador, o que pode ser explicado pelo recuo no rendimento dos mais ricos. A concentração aumentou no Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste, mostrou o IBGE ontem, ao divulgar o comportamento do rendimento de todas as fontes em 2017, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc).

Carência. A diarista Maria Alessandra da Silva lava roupa no fosso da Catedral de Brasília. Em todas as regiões do Brasil, com exceção do Sudeste, a concentração de renda cresceu
— É mais um ano perdido, a renda não aumentou, a desigualdade não caiu — afirmou o economista Sergei Soares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Pela primeira vez, foi possível avaliar a evolução da desigualdade recente, já que os dados sobre todas as rendas na atual metodologia da Pnad passaram a ser compilados apenas a partir de 2016, numa pesquisa mais abrangente e completa.

Cimar Azeredo, coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, toma como exemplo o Rio para explicar a queda da desigualdade no Sudeste:

— Houve perda expressiva de emprego com carteira, com renda mais alta. A crise do petróleo também afetou trabalhadores com rendimento maior.

ENTRE OS 5% MAIS POBRES, RENDA 38% MENOR

Em 2017, houve queda de 0,56% no rendimento de todas as fontes, que inclui, além dos salários, aposentadorias, pensões, benefícios sociais como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC), passando de R$ 2.124 em 2016 para R$ 2.112 em 2017. Nos rendimentos do trabalho, a queda foi mais intensa, de 1,36%. Mais forte ainda entre os que ganham menos. Entre os 50% mais pobres, o recuo foi de 2,45%. Essa massa de 43,4 milhões de trabalhadores passou a receber R$ 754, valor 20% menor do que o salário mínimo de R$ 937 vigente no ano passado. A distância entre a base da pirâmide de renda e o topo aumentou. Os 10% mais ricos perderam 2,98%, enquanto os 10% mais pobres viram os rendimentos caírem 15,2%. Entre os 5% mais pobres, a perda chegou a 38%. Nessa faixa, o rendimento mensal é de R$ 47:

— É preocupante essa queda na cauda inferior, uma faixa muito afetada pelo desemprego e pelo congelamento dos benefícios do Bolsa Família. O problema é que, entre os 5% mais pobres, houve uma queda de renda duas vezes maior que a média nos anos anteriores. São pioras sucessivas, houve nova piora num grupo que já tinha perdido 14% — afirmou Marcelo Neri, diretor da FGV Social.

Paulo (nome fictício), que cata latinhas de madrugada em Botafogo, foi um dos milhões de atingidos pelo desemprego. O estaleiro onde trabalhava até o início do ano passado faliu. Ele mora em Niterói com a mulher e quatro filhos (entre 8 e 13 anos). Vivem do salário da mulher, auxiliar de limpeza, e das latas que consegue catar. De dia, descansa em um barraco montado em um píer de pedra atrás do Aeroporto Santos Dumont, no Centro do Rio.

As desigualdades regionais se acirraram. No Nordeste, o Índice de Gini subiu de 0,555 para 0,567, fator preocupante, segundo analistas, por a região já ser a mais desigual no país. Em 2017, metade da população ganhava, em média, R$ 487, cerca de 50% do salário mínimo. Em 2016, a renda desse grupo correspondia a 57% do salário mínimo.

— É um grande aumento do Índice de Gini. Já era a região mais desigual, ficou mais ainda. Mas já vemos em 2018 uma melhora nos indicadores do mercado de trabalho no Nordeste — diz Neri.

A desigualdade alta no Brasil cria distorções na distribuição do bolo de rendimentos. Segundo o IBGE, os 10% que ganham mais concentram 43,3% da massa de rendimentos mensal, estimada em R$ 263,1 bilhões. Juntos, os 10% mais ricos recebem o mesmo que os 80% mais pobres da população. Com isso, 12,4 milhões de pessoas concentram a renda equivalente à de quase 100 milhões pessoas (99,6 milhões).

Os que estão no topo da pirâmide de renda, o 1% mais rico, manteve sua distância dos 50% mais pobres. Eles recebem 36,1 vezes mais que 50% mais pobres. No Nordeste, essa distância é ainda maior, de 44,9 vezes. Em 2016, a diferença era de 39,9 vezes. No Norte, essa diferença também subiu: passou de 31,9 vezes para 35,9 vezes.

— O Brasil é bastante desigual, encabeçando a lista de países mais desiguais do mundo. Essa desigualdade se materializa quando se olha região, cor, sexo ou escolaridade — afirma Azeredo, do IBGE.

SALÁRIO DAS MULHERES É 77,5% DO DOS HOMENS

Nos rendimentos do trabalho, a desigualdade se manteve no mesmo patamar. O Índice de Gini passou de 0,525 para 0,524. No Nordeste, a subida foi forte, de 0,545 para 0,550. As mulheres mantiveram a diferença salarial em relação aos homens. Elas recebem 77,5% do salário masculino: R$ 1.868 contra R$ 2.410. Mas já foi pior. Em 2016, as mulheres ganhavam 77,2% do que recebiam os homens. Entre negros e brancos, o fosso social permaneceu. Os pardos ganham o equivalente a 57% do salário dos brancos. Entre os pretos, a diferença é ainda maior: eles ganham somente 55,8% do salário do branco.

Além dos rendimentos do trabalho, caiu a parcela da população que recebia algum rendimento em 2017. Passou de 60,5% para 60,2%, o que Azeredo, do IBGE, considerou significativo:

— Reduziu o número de pessoas trabalhando, provocando queda na população com rendimento. A queda foi mais intensa no Nordeste, caindo de 57,1% para 56,5%.

Essa situação deve perdurar ainda até 2020, na avaliação de Soares, do Ipea. Ele lembra que há defasagem entre a reação da economia e a do mercado de trabalho:

— Não vejo uma reação antes de 2020. De qualquer forma, os níveis de desigualdade devem voltar a cair, mas lentamente, não como foi nos anos antes da recessão. O número de filhos está diminuindo, e o nível de escolaridade, aumentando. São fatores de longo prazo que jogam a favor da redução da concentração de renda.