Correio braziliense, n. 20084, 17/05/2018. Mundo, p. 14

 

Kim joga os dados

Rodrigo Craveiro

17/05/2018

 

 

CRISE NUCLEAR » Coreia do Norte torna a ameaçar o cancelamento da reunião entre o seu líder e Donald Trump, em 12 de junho, e ataca declarações de assessor da Casa Branca. Analistas veem manobra de Pyongyang para mostrar força e afastar Seul de Washington

Ao renovar as ameaças de cancelamento da cúpula entre o ditador Kim Jong-un e o presidente norte-americano, Donald Trump, a Coreia do Norte colocou os Estados Unidos em situação desconfortável. Apesar de manter esperanças de que o encontro ocorra em 12 de junho, em Cingapura, a Casa Branca insiste na desnuclearização do regime como precondição para o diálogo e, ao mesmo tempo, se engaja em uma campanha diplomática para evitar o colapso do progresso obtido na aproximação com Pyongyang e nas relações intercoreanas. O vice-ministro das Relações Exteriores norte-coreano, Kim Kye Gwan, foi incisivo nas advertências a Washington. “Se os EUA tentarem nos encurralar para forçar que abandonemos unilateralmente nossas armas nucleares, não mais estaremos interessados em tal diálogo e vamos ter que reconsiderar o comparecimento à cúpula”, declarou, segundo a agência estatal KCNA.

Pyongyang acusa o governo Trump de impor à Coreia do Norte um modelo aplicado na Líbia para a desnuclearização — a comparação foi feita por John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional, em entrevista à TV Fox News. “O mundo sabe muito bem que nosso país não é a Líbia nem o Iraque, que tiveram um destino miserável. É absolutamente absurdo equiparar a República Popular Democrática da Coreia do Norte, um Estado nuclearizado, com a Líbia, que estava no estágio inicial do desenvolvimento nuclear”, acrescentou o vice-chanceler norte-coreano.

Na véspera, o regime de Kim Jong-un havia expressado insatisfação com as manobras militares conjuntas entre Washington e Seul. De acordo com a agência Yonhap, a chanceler sul-coreana, Kang Kyung-wha, e o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, mantiveram conversas telefônicas, durante as quais mostraram solidariedade ante as ameaças, feitas por Pyongyang, de sabotagem dos diálogos. Trump deu respostas lacônicas ao ser questionado por jornalistas, durante visita do presidente do Uzbequistão, Shavkat Mirziyayev. “Nós teremos que ver”, reagiu, quando interrogado sobrese a cúpula seria mantida. Ante uma indagação sobre se a reunião poderia ser salva, o republicano disse que “não há decisão”. “Não fomos notificados sobre nada. Teremos que ver”, afirmou.

“Diplomacia arriscada”

Scott Snyder, diretor do Programa sobre Política EUA-Coreia do Norte do Conselho de Relações Exteriores (CFR), explicou ao Correio que Pyongyang deseja saber o quanto Trump deseja a cúpula e qual preço ele estaria disposto a pagar. “Vejo as manobras norte-coreanas como uma diplomacia arriscada, a qual sugere que ambos os lados estão em um processo de negociação. Eles devem manter o curso e prosseguir com a conversa. Pompeo ou um representante terá de retornar a Pyongyang e moldar  um rascunho de acordo sobre a desnuclearização, antes da reunião em Cingapura”, comentou.

De acordo com o especialista, os norte-coreanos têm enviado mensagens a Seul e a Washington. “Na mensagem à Coreia do Sul, eles usaram a Declaração de Panmunjom (firmada após o encontro entre Kim e o líder sul-coreano, Moon Jae-in, em 27 de abril) como base para criticar as simulações bélicas. Isso coloca pressão sobre Moon para que ele não se alinhe tão proximamente a Trump na visita que fará a Washington, na próxima semana. No recado aos EUA, os norte-coreanos sugerem ter  identificado divisões internas na política de Trump”, acrescentou. Snyder lembrou que a Coreia do Norte deseja entrar nas negociações em posição de força, e não de rendição unilateral.

Tong Kim, professor visitante da Universidade de Estudos da Coreia do Norte (em Seul), disse à reportagem que, caso a cúpula ocorra em 12 de junho, Kim Jong-un deixará clara a oposição a qualquer demanda de Trump que não atenda às exigências de garantias de segurança para o regime. “Se a reunião fracassar — não ocorrer ou falhar em produzir resultados —, Trump provavelmente retomará a  posição de pressão máxima, com a imposição de sanções.”

Joshua Pollack, editor do The Nonproliferation Review e especialista do Instituto Middlebury de Estudos Internacionais, crê que, em caso de cancelamento da cúpula, as Coreias preservariam a diplomacia. “Pyongyang espera que Seul coloque uma distância maior em relação a Washington.” Uma suspensão do evento não preocupa Steven Weber, professor de ciência política da Universidade da Califórnia-Berkeley. Ele sublinhou que os dois lados investiram muito capital político para dar um passo rumo a um acordo. Os norte-coreanos estão preocupados com o fato de que Washington a veja chegar à mesa de diálogo numa posição enfraquecida. Eles desejam transmitir aos EUA uma mensagem de que são fortes o bastante para suportar o colapso das negociações, caso Washington peça além do esperado”, disse ao Correio.

Informante liga empresa à Rússia

Enquanto os Estados Unidos buscavam meios de contornar o imbróglio com a Coreia do Norte, a denúncia de um informante no Congresso estremecia Washington. De acordo com Christopher Wylie, que vazou informações sobre o sequestro de dados de milhões de usuários do Facebook pela Cambrige Analytica, a empresa britânica compartilhou dados com companhias ligadas à Inteligência russa e usou pesquisadores deste país. Ele apontou que o pesquisador russo-americano Alexander Kogan, criador de um aplicativo para obter dados de usuários do Facebook, trabalhava em projetos financiados pela Rússia.

Críticas contra “asserções soltas”

Em comunicado divulgado pela agência estatal KCNA, o vice-chanceler da Coreia do Norte, Kim Kye Gwan, denuncia que autoridades da Casa Branca e do Departamento de Estado norte-americano, incluindo o conselheiro de Segurança Nacional John Bolton, estão fazendo asserções soltas do “modo Líbia” de abandono nuclear — a desnuclearização irreversível completa e verificável; o total desmantelamento das armas nucleares, mísseis e armas bioquímicas, etc. —, enquanto falam sobre  “abandonar as armas nucleares antes e ter compensação depois”.  De acordo com Kim, esta é uma “manifestação de manobra terrivelmente sinistra para impor ao nosso digno Estado o destino da Líbia ou do Iraque, que entraram em colapso”.

 

Pontos de vista

Por Tong Kim

Culpa parcial dos americanos

“Os EUA são parcialmente responsáveis pelo retrocesso na aproximação com a Coreia do Norte. Os assessores de Trump têm falado como se os norte-coreanos tivessem decidido, de forma estratégica, entregar o arsenal nuclear e os mísseis, de acordo com os termos que Washington deseja impor a um acordo. Os norte-coreanos estão céticos em relação à promessa de ajuda  feita pelo secretário de Estado, Mike Pompeo.”

Professor visitante da Universidade de Estudos da Coreia do Norte, em Seul

 

Por Joshua Pollack

Diferenças profundas

“Os EUA e a Coreia do Norte têm expressado opiniões divergentes sobre o tema do desarmamento nuclear. Não é culpa de nenhum dos dois lados, exceto neste sentido: ambos escutaram apenas o que queriam escutar. O papel da Coreia do Sul como intermediário pode ter ajudado nesse processo. Agora, que as Coreias falam diretamente com frequência e prestam atenção às palavras um do outro, ficou mais difícil ignorar a profundidade das diferenças entre os dois países.”

Especialista do Instituto Middlebury de Estudos Internacionais

 

Por Steven Weber

Respostas às dúvidas

“Eu estou confiante de que EUA e Coreia do Norte queiram descobrir as respostas para dúvidas que um tem sobre o outro. Espero que a cúpula ocorra, mas aguardo mais posturas deste tipo, dos dois lados, nas próximas semanas.”

Cientista político da Universidade da Califórnia-Berkeley