O globo, n. 30925, 08/04/2018. País, p. 6A

 

E agora, PT?

Ascânio Seleme

08/04/2018

 

 

Com Lula preso, o Partido dos Trabalhadores tende a se tornar um partido médio, como aqueles que orbitam em torno dos governos para ganhar cargos e ocupar funções públicas. Quem nunca acreditou que o PT pudesse virar um simples partido satélite, é melhor ir se acostumando com a ideia. Lula era, sempre foi, maior que o PT. Uma pena para o PT e para o Brasil, que viu florescer e agora murchar um verdadeiro partido de esquerda, com ideais de inclusão e distribuição de renda importantes para um país em construção como o nosso.

O PT terá de repensar o seu discurso. Como nunca foi radical, a não ser nos últimos dois, três anos, com o cerco a Dilma e seu consequente impeachment e, depois, com o julgamento de Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, o PT perdeu este espaço para outros partidos, sobretudo o PSOL. Não fará sentido para o PT, a partir de 2019, fora do governo federal, com uma bancada que deve ser menor que a metade da atual, e com alguns minguados governadores em estados periféricos, continuar com este perfil beligerante contra inimigos que nunca existiram, como o Ministério Público, a Justiça e a Imprensa.

Sobre a Imprensa, aliás, as cenas de agressão de militantes do partido a jornalistas profissionais, como se viu na cobertura da prisão de Lula, é questão de polícia. O PT era um veterano aliado da Imprensa quando estava na oposição. E assim procedeu no início do governo petista, até a eclosão do escândalo do mensalão. Deste momento em diante passou a atacar veículos e jornalistas. No governo, pelas mãos do ex-ministro da Comunicação Franklin Martins, chegou a cogitar a baixar normas que batizou de “controle social da mídia”, mas que na verdade eram simples censura.

Enfim, é este tipo de reação, que significa apenas autodefesa, que precisa mudar. Claro que o PT terá de encontrar novos líderes, fortes e carismáticos para voltar a ter relevância nacional. Nesta próxima eleição, seus 20% a 30% de votos cativos cairão para um patamar bem mais baixo sem Lula. Todos sabem que uma enorme fatia deste eleitorado é, na verdade, de Lula, e não do PT. Tanto que, dos milhões que deixarão de votar no PT sem Lula, uma parcela considerável vai votar em Bolsonaro, a antítese do PT, nem tanto de Lula.

O PT sabe muito bem que sem Lula recuará muito eleitoralmente. Por isso, muito mais do que por solidariedade ao homem que estava sendo encarcerado, os petistas lutaram desesperadamente para manter Lula fora da cadeia. A tal ponto de atentar contra o Supremo Tribunal Federal. Por isso também continuam dizendo que Lula será o candidato do partido mesmo preso. A falta de sensatez desta afirmativa não importa, o que interessa é manter acesa a chama de Lula.

Lula gravou vídeos e fez fotos com inúmeros políticos do PT e de outros partidos de esquerda, como Celso Amorim, Lindberg Farias e Manuela D’Ávila, ao longo do seu exílio dentro do sindicato. Servirão para a campanha de outubro. Outros vídeos que fez, além das imagens dos militantes em frente ao sindicato, serão usados mais adiante, na campanha, caso ele não consiga sair para uma prisão domiciliar antes disso. Significa que o espectro de Lula será usado mesmo com ele encarcerado. O PT teima em não andar sozinho.

O DISCURSO DE LULA

Não há qualquer dúvida, Lula é muito bom de palanque. Nos 55 minutos que falou ontem antes de se entregar à polícia, repetiu o mesmo discurso de sempre e, incrível, empolgou a mesma plateia de militantes que sabe cada trecho desta fala de cor e salteado.

Primeiro, Lula repetiu aquela velha invenção de marqueteiros de que não há provas contra ele. Há inúmeras provas contra Lula, é só ler o processo. Falou também que vai provar sua inocência, sem explicar como, já que todas as instâncias da Justiça confirmaram sua culpa.

Depois, ao atacar a Justiça, o Ministério Público e a Imprensa, Lula mais de uma vez abusou da retórica. A mais perigosa delas foi quando acusou estas instituições pela morte de sua mulher Marisa. Se jornalistas já são atacados nas ruas e ministros têm suas casas pichadas por militantes intolerantes, a fala de Lula foi mais um incentivo a estas agressões.

Voltou àquela conhecida lenga-lenga de que “eles” não querem que os pobres comam carne, tenham carro e viajem de avião. Essa é uma das peças mais conhecidas do marketing do PT. Falsa, claro, mas faz sucesso com a militância.

No final disse que nunca se esqueceu de seus velhos amigos sindicalistas que comiam com ele “caldo de mocotó no bar do Zelão”. Não é o que conta a História. Seus velhos amigos sempre reclamaram que Lula os abandonou quando foi para o Planalto.

MOLEZA

Ao final do discurso de Lula, Gleisi Hoffmann pegou o microfone e convocou a militância: “Não vamos abandonar Lula, vamos para Curitiba e não vamos sair de lá”. Para Gleisi é mole, ela mora lá. Mas, talvez Stédile ajude com ônibus e quentinhas.

CRIADOR E CRIATURA

O cerco dos militantes que tentaram impedir a saída de Lula do sindicato é o resultado da intransigência do discurso petista contra todas as instituições. Poderia significar a prisão preventiva do ex-presidente. Para todo crime há um castigo.

NADA MUDOU

Fato raro na política nacional, o ministro do Planejamento vai para o BNDES e dá lugar ao seu secretário executivo, que passa a ser seu chefe. Mas tudo bem, o chefão de ambos é o mesmo Romero Jucá.

NOSSO RIO

Um trecho na BR-040 está interditado desde o final do ano passado, quando um túnel que estava sendo construído e foi abandonado pela concessionária Concer desabou, engolindo casas e terrenos e prejudicando uma parte grande da pista.

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Memórias de uma outra cela

Rafael Ciscati

08/04/2018

 

 

Enílson Moura, o Alemão, dividiu cela com Lula no Dops de São Paulo, durante a ditadura, mas mantém visão crítica a ‘tendências políticas’ do ex-presidente

O sindicalista Enílson Simões de Moura diz que acompanhou sem sobressalto — e pela TV — as notícias sobre a ordem de prisão emitida pelo juiz Sergio Moro para o ex-presidente Lula. Hoje com 67 anos, Moura era militante de esquerda em 1980, quando fazia parte do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) e atendia pela alcunha de Alemão. Por quase 30 dias, naquele ano, dividiu cela com Lula e outros 12 detentos, naquela que foi a primeira prisão do líder sindical, ainda durante a ditadura militar.

Mais de três décadas depois, os companheiros de cela se afastaram. E Moura assumiu uma postura crítica em relação ao ex-presidente:

— Era meio previsível que o STF negaria o pedido de habeas corpus. A ministra Rosa Weber foi absolutamente coerente com suas decisões anteriores.

Moura ainda milita. É vice-presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT). Mas acha que é preciso combater messianismos, a que Lula é, por vezes, associado:

— A gente tem de ser crítico a certas tendências populistas — afirma Moura.

Quando Lula foi preso, no dia 19 de abril de 1980, o país assistia ao 17º dia da greve de metalúrgicos que, naquele ano, fizera 140 mil operários cruzar os braços. Lula e outros líderes sindicais foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional — um dispositivo criado em 1935, na ditadura Vargas, e que punia com rigor aqueles que atentassem contra “a ordem política e social”.

Embora não fizesse parte de sindicatos, Moura era o representante dos funcionários da Volkswagen. Participou de mobilizações que culminaram nas grandes greves operárias de 1979 e 1980. Foi nesse contexto que conheceu Lula, um líder sindical em ascensão:

— Nós só tínhamos uma relação de cordialidade. Não dá para dizer que éramos amigos — diz Moura.

À época, quando soube da prisão de Lula, Moura logo entendeu que, mais dia menos dia, teria o mesmo destino.

— Eu dormia todo dia em um lugar diferente — conta. — Mas a polícia acabou me pegando durante uma passeata organizada em favor das lideranças presas.

Posto num camburão, foi levado para a sede do Dops, o Departamento de Ordem Política e Social — um dos principais órgãos de repressão da ditadura, chefiado por Romeu Tuma, nome frequentemente associado a mortes e torturas de prisioneiros nos anos de chumbo:

— Mas o Tuma tinha decidido ser simpático com todos. A estratégia era mostrar que estávamos sendo bem tratados.

Àquela altura, prevalecia entre os sindicalistas a impressão de que a ditadura se aproximava do fim. Era o segundo ano do governo Figueiredo, o último dos presidentes generais, que fizera da abertura política uma de suas bandeiras. Segundo Moura, a maioria dos prisioneiros de abril não temia tortura:

— No ano anterior, eu tinha sido preso 15 vezes. A gente estava seguro de que aquela nova prisão terminaria bem.

A atenção dada pela imprensa ao episódio reforçava essa segurança. Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, dado anos depois, Lula disse que chegou, sim, a temer ser morto. Seus aliados, fora da prisão, organizaram mobilizações e chamaram a atenção dos jornais. Em parte, era uma estratégia para evitar que os direitos dos prisioneiros fossem violados.

A cela em que estavam os 15 prisioneiros era apertada, comprida mas estreita. Havia pouco espaço, mas as camas eram suficientes para todos: o cômodo era apinhado de quadriliches (beliches com quatro camas). Aqueles dias foram de tédio:

— Não havia muito o que fazer. Às vezes a gente conversava sobre que tipo de mensagem podíamos mandar para os grevistas lá fora, para mostrar que continuávamos firmes — lembra.

Havia uma distribuição ideológica desigual entre os prisioneiros. Na época, o movimento sindical lutava por melhores condições de trabalho e aumento de salários. Mas evitava se identificar com a esquerda:

— De esquerda mesmo, havia eu e outros dois, que fazíamos parte de movimentos clandestinos — diz Moura — Se perguntassem a ideologia do Lula, ele diria: “torneiro mecânico”. Como chegou mesmo a dizer, numa provocação.

Até por essa distância ideológica, o clima da cela não era dos mais politizados:

—Na época, sindicalista falava de mulher, cachaça e futebol — afirmou, rindo — Hoje isso mudou. Mas nem tanto.

A relação com os carcereiros era cordial. É conhecida a história de que Tuma permitiu que Lula saísse da prisão para comparecer ao velório da mãe. Moura diz que essa espécie de gentileza se aplicava, em maior ou menor grau, aos demais detentos. Ele próprio era pai de uma menina de dois anos que adoecera naqueles dias:

—E o Tuma deixou minha ex-mulher e minha menina me visitarem. Passamos um dia inteiro juntos numa das salas do Dops.

Os presos foram interrogados algumas vezes, mas não foram torturados. Tuma só se irritaria quando, lá pelo 20º dia de detenção, os presos decidiram fazer greve de fome. A ideia partiu de Zé Maria de Almeida — que, anos mais tarde, se tornaria líder do PSTU. Lula, Moura e outros companheiros se opuseram mas, votos vencidos, aderiram.

— Tuma tentou nos dissuadir. Disse que aquilo só nos faria mal — recorda Moura. — Ele chegou a mandar os guardas deixarem frango assado na porta da cela.

Lula seria liberado 31 dias depois de preso. O PT fora criado pouco tempo antes, naquele mesmo ano.

— Depois daquilo, o movimento sindical ganhou fôlego — lembra Moura.