Correio braziliense, n. 20082, 15/05/2018. Política, p. 2

 

Brasil pede à CIA abertura de arquivos

Renato Souza

15/05/2018

 

 

ANOS DE CHUMBO » Por meio do Ministério das Relações Exteriores, o governo federal solicitou que os EUA forneçam informações sobre assassinatos e tortura de opositores ao regime militar. Liberação de documentos foi pedida inicialmente por filho de Vladimir Herzog

Um memorando divulgado pela agência de inteligência norte-americana (CIA) deve mudar parte da história do regime militar brasileiro. O documento revelou que assassinatos ocorridos na década de 1970 foram realizados com o aval do ex-presidente Ernesto Geisel (1974-1979). No entanto, parte dos fatos ainda permanece oculta — pois trechos estão em sigilo. Mas um pedido do governo brasileiro, realizado ontem, após solicitação de Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, pode jogar mais luz sobre esse período obscuro do nosso passado.

Por meio do Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, o governo federal solicitou que a CIA forneça informações sobre assassinatos e tortura de opositores ao governo do Brasil entre os anos de 1964 e 1985, período em que os militares ocuparam o poder. O memorando enviado pelo diretor da CIA ao então secretário de Estado Henry Kissinger, revelado pelo pesquisador Matias Spektor, coordenador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), descreve encontros entre o presidente Geisel e generais que comandavam o Centro de Inteligência do Exército (CIE).

Dos seis parágrafos contidos no documento, dois ainda permanecem em segredo. As informações que estão no site da CIA revelam que Geisel se reuniu com o general Milton Tavares de Souza (chamado General Milton) e com o general Confúcio Danton de Paula Avelino, em 30 de março de 1974. Também estava no local o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI). O General Milton contou que 104 pessoas foram assassinadas no governo anterior, conduzido por Emílio Médici, e que diante da “ameaça subversiva e terrorista” métodos “extralegais” deveriam continuar a serem empregados.

Geisel afirmou que precisava ir para casa pensar. Em 1º de abril, ou seja, cerca de 48 horas depois, o chefe do Executivo ligou para o general Figueiredo e autorizou que a matança continuasse. “Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando a CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe da CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada”, descreve um trecho do 4º parágrafo do memorando.

Outro trecho afirma que os militares devem se concentrar “na subversão interna”. Esse termo era usado na época para descrever movimentos e pessoas que não concordavam com os atos do regime. “O presidente e o general Figueiredo também concordaram que a CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral da CIE será coordenado pelo general Figueiredo.”

Um dos mortos após o dia em que Geisel avalizou a continuidade das ações foi o jornalista Vladimir Herzog. Ele se tornou um símbolo de luta contra o regime ao ser encontrado morto em 1975. O filho de Herzog, Ivo Herzog, foi quem solicitou ao governo que pedisse a liberação dos documentos. Ele afirma que o Brasil não pode avançar sem conhecer o seu passado de forma profunda. “Com esses documentos, é possível que novos personagens relacionados a esses acontecimentos sejam revelados. Um país sem memória não consegue avançar. É necessário entender o passado para garantir que torturas, assassinatos e outras atrocidades não ocorram novamente”, afirmou.

O pedido do Itamaraty não é apenas para que sejam liberados os demais parágrafos do documento, mas sim para que sejam fornecidos todos papéis relacionados ao período do regime militar que estão em poder da agência e descrevem execuções e torturas que ocorreram durante o período. O ofício que solicita colaboração norte-americana foi redigido na Embaixada do Brasil em Washington e endereçado à CIA e ao Departamento de Estado, ligado à Casa Branca.

O governo norte-americano não tem um prazo para responder. No entanto, existem diversos acordos de colaboração entre os dois países. A expectativa do Itamaraty é que a solicitação seja atendida com celeridade. O presidente Donald Trump precisa ser consultado sobre a divulgação de arquivos que possam influenciar as relações internacionais dos Estados Unidos.