Valor econômico, v. 17, n. 4437, 06/02/2017. Brasil, p. A2.
A transação fica para 2019
Antonio Delfim Netto
06/02/2018
Parece que o presidente Temer decidiu que a Previdência não vai continuar entulhando o caminho dos 11 meses que lhe restam de governo, mas voltou a reafirmar a sua decisão de ser julgado no futuro como o governo com maior densidade de "reformas" num mandato de apenas 30 meses.
Diante da pobreza do relatório da CPI do Senado sobre o gravíssimo problema do insustentável regime de Previdência Social, parece inútil insistir no encaminhamento de sua solução. Encerramos 2017 com um déficit de R$ 182 bilhões no regime operado pelo INSS, que atende a mais ou menos 30 milhões de beneficiários. Se a ele somarmos o déficit da previdência do setor público (civil e militar) da ordem de R$ 86 bilhões de reais, e que atende a quase um milhão de beneficiários, chegamos a um déficit da Previdência federal da ordem de R$ 268 bilhões.
O resultado da tragédia é que gastamos 57% das despesas do governo com os aposentados, sacrificamos as demais despesas, deixamos um déficit primário de R$ 118 bilhões e um nível de investimento desastroso (0,7% do PIB). E isso só no governo federal. O problema é também grave nos Estados e municípios.
(...)
A rápida redução da taxa de fertilidade, combinada com o aumento da longevidade, alterará, em poucos anos, a estrutura da nossa população. Graças às mudanças da educação das mulheres e aos avanços criados pela medicina, o IBGE revela que a população brasileira envelhece a uma velocidade maior do que a de outros países. Para nós, portanto, o futuro chegará mais cedo e não temos como fugir dele. A demografia não perdoa!
Os números acima revelam uma desigualdade inadmissível numa república: o custo anual de um aposentado no serviço público é equivalente ao de 14 aposentados de setor privado! Essa situação é insuportável do ponto de vista fiscal e inaceitável do ponto de vista moral. Ela produz uma redistribuição de renda a favor da alta burocracia estatal não eleita, que cresce sem nenhum controle, o que é altamente corrosivo para a solidariedade social. Reduz, também, a renda indireta da classe menos favorecida, que precisa do suporte governamental para gozar de benefícios mínimos: segurança, saúde, educação, mobilidade urbana.
Diante desses fatos, foi surpreendente a incapacidade de comunicação do governo de transmitir o problema à maioria da sociedade. A gigantesca confusão que se armou deliberadamente, com a judicialização da ação política e a recíproca politização da justiça, criou um ambiente onde foi relativamente fácil divulgar uma notícia "falsa": que a reforma da Previdência prejudicaria os mais pobres. Esses foram enganados. Por desconhecimento, apoiaram exatamente os beneficiários das desigualdades que lhes roubam mais e melhores serviços públicos.
E qual será a solução, se os detentores do poder continuarem a insistir nos "direitos adquiridos" depois de esgotarem-se os recursos orçamentários? Tomá-los diretamente dos mais pobres com aumento de impostos para reduzir-lhes o consumo e, indiretamente, reduzindo a oferta de segurança, saúde, educação etc. Quando a resistência a esse método esgotar a paciência da sociedade, se recorrerá à mais cruel das taxações: a inflação, um imposto que incide sobre os mais pobres!
O que o "povão" precisa introjetar é que quem financia os privilégios dos poderosos é ele mesmo! Escolhe-se diretamente o Poder Legislativo nas urnas e indiretamente, por concurso público, a burocracia não eleita, protegida das variações naturais da conjuntura por garantias constitucionais. Tais garantias assumem aos olhos dos seus beneficiários a natureza de "direitos divinos", quando ignoram as limitações físicas, impostas pela realidade.
Quando, entretanto, a insolvência do Estado bate à porta (que é o nosso caso atualmente), a obtenção do relativo equilíbrio fiscal pretere, por bem ou por mal, o mito do "direito adquirido". Basta ver o que está acontecendo em alguns Estados e municípios. Ou, então, o que aconteceu na Grécia e Portugal, cuja Constituição, aliás, inspirou a brasileira. O atraso na decisão de fazer o ajuste ordenado sempre termina num ajuste caótico e num sofrimento muito maior de toda a população.
Ainda não chegamos a esse momento e é por isso que tinha razão o presidente Temer em insistir na reforma previdenciária para facilitar a vida do poder incumbente que será eleito em outubro. Ele em nada se beneficiará, porque a situação ao longo de 2018 ainda será manobrável. Quem vai ter problema antes do fim do seu mandato será o próximo presidente. Isso leva à conclusão que quem não tem interesse em aprová-la são os partidos que não têm esperança de poder em 2019 e poderão "transacionar", de novo, os seus votos na próxima legislatura...
Temer tem mais razão ainda quando, diante da oposição do Congresso à aprovação da modesta reforma da Previdência que "sobrou" da original, substituiu-a por outras "reformas" (medidas infraconstitucionais nas áreas da administração, especialmente, tributária) para aproveitar os 11 meses que lhe sobram e consolidar a sua posição de "reformador" que a história - a despeito de todos os percalços - não lhe negará.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
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