Correio braziliense, n. 20080, 13/05/2018. Brasil, p. 6

 

Um momento de reflexão

Otávio Augusto

13/05/2018

 

 

SOCIEDADE » Especialistas avaliam que os 130 anos da assinatura da Lei Áurea podem servir para a aumentar a inclusão do negro à sociedade

Curiosamente, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea em um domingo. Hoje, completa 130 anos e, para especialistas, a data não é um momento de comemoração, mas de reflexão. O presente ainda está tomado pelo passado. O texto tem apenas dois artigos. É a lei mais curta do país. “Artigo 1º: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Artigo 2º: Revogam-se as disposições em contrário.” A dívida histórica se perpetuou em uma falha: como ficaria a situação dos libertos? Como seria o futuro desse povo? A lei não abordou nenhum desses aspectos.

Quando a liberdade chegou, eram 700 mil escravos. A população brasileira beirava 10 milhões de pessoas. A lei só entrou em vigor após a aprovação da Câmara dos Deputados e do Senado do Império. Foram dois dias de votação. Os escravagistas apostaram que seriam indenizados. Os escravos esperavam apoio do governo para continuar vivendo. Os dois grupos antagônicos não tiveram nenhum ressarcimento.

Escravagistas romperam com a Coroa, aliaram-se ao partido Republicano e, um ano e meio depois, colocaram fim à intenção do Império de um reinado para a princesa Isabel e proclamaram a República, em 1889. “Os interesses falaram mais alto. A aristocracia brasileira ao longo do século 19 foi escravocrata. Perder isso foi um golpe profundo no interesse econômico”, explica o professor de história política e contemporânea da Universidade de Brasília (UnB) Antônio José Barbosa.

Isso resultou em miséria, em desigualdade social extrema e em violência. “A lei não estabeleceu as condições elementares para que os escravos e seus descendentes fossem incorporados a uma sociedade igualitária. A lei não previu absolutamente nada com o que aconteceria com os escravos depois de 13 de maio de 1888. Não traça nada do que deveria ser feito e não explica como eles seriam absorvidos na sociedade”, critica Barbosa. “O resultado é que hoje ainda estamos discutindo a equalização de problemas históricos que nos atravancam há pelos menos quatro séculos e meio”, emenda.

Desigualdade

Registros históricos da Biblioteca Nacional revelam que as primeiras pequenas favelas surgiram na transição do Império para a República. Sem ter onde morar, os ex-escravos passaram a ocupar desordenadamente as cidades. Não existiu nenhum controle por parte do governo a respeito das construções irregulares e muito menos houve a preocupação com quem iria habitá-las. A primeira grande favela registrada na cidade do Rio de Janeiro foi em 1893 — processo que se acentuou na década de 1970, com o forte crescimento econômico brasileiro e a expansão do êxodo rural.

Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), Rui Tavares Maluf é enfático. “Tivemos, de maneira geral, um grupo político dominante de uma visão pouco civilizatória no Brasil, por isso, a desigualdade social é muito grande. O negro neste contexto virou um subproduto dentro disso. No século 19, já tínhamos problema de pobreza para uma população que não era de negros libertos”, explica.

Tentativas frustradas

Em 1845, surgiu a lei que previa sanções contra o tráfico de escravos. Em 1871, foi adotada a Lei do Ventre Livre, que dava liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir da sua edição, mas os manteve sob a tutela dos seus senhores até os 21 anos. E em 1885, garantiu-se liberdade aos que completassem 60 anos, com a obrigação de prestar serviços, a título de indenização ao senhor, por três anos. Essas medidas, porém, não trouxeram os resultados esperados, pois a contrapartida geralmente exigida inviabilizava seu cumprimento ou a lei era simplesmente desrespeitada.

Pioneirismo

As províncias do Amazonas, do Ceará e do Rio Grande do Norte foram as primeiras a abolir a escravidão. A medida custou os cargos dos governadores. A força do movimento abolicionista começou em Mossoró (RN), em 30 de setembro de 1883. O exemplo da cidade passou a ser seguido por comunidades do interior da Província do Rio Grande do Norte, em 1884. Desde a chegada dos primeiros escravos, em 1550, o movimento abolicionista começou a ganhar fôlego.

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Quatro perguntas para...

13/05/2018

 

 

Maurício Krepsky Fagundes, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho

Por que ainda hoje vemos pessoas para trabalhando como escravos?

Manter o trabalhador nessas condições é lucrativo. Isso estimula essa prática, sobretudo quando o trabalhador mora no local do emprego. O viés cultural também ajuda para que isso exista. A condição de miséria e vulnerabilidade dos trabalhadores são combustíveis para a submissão ao trabalho análogo ao escravo. Alguns acreditam que a falta de acesso à água potável, à comida, à moradia e à renda são normais.

 

Qual a maior dificuldade no combate?

Não podemos esperar a denúncia para fiscalizar. Precisamos investir em novas formas de atuação, com uso de inteligência e rastreamento para identificar trabalho escravo. Hoje, nossa maior dificuldade é, embora a sociedade tenha noção do que é trabalho escravo e das consequências que isso traz para o empregador, reinventar o modo de atuação para ser mais proativo.

 

O número de fiscais compromete o trabalho. Por isso, o número de resgates está baixo?

Isso afeta o combate do trabalho escravo e influencia a queda no número de trabalhadores resgatados. Não nos baseamos em provas documentais, mas, sim, em visitas, entrevistas e inspeção.

 

A maioria dos trabalhadores resgatados é de negros?

A predominância é de negros e pardos. A região de Barreiras, na Bahia, é um exemplo. Há uma sociedade que ficou marginalizada e, com o tempo e a vulnerabilidade, voltou para uma situação parecida com a de seus antepassados. Nisso, o ponto histórico favorece.