Correio braziliense, n. 20074, 07/05/2018. Negócios, p. 8

 

"As incertezas são típicas de períodos eleitorais"

Mailson da Nóbrega e Jaqueline Mendes

07/05/2018

 

 

São Paulo — Uma das vozes mais respeitadas no campo econômico brasileiro, o economista paraibano Mailson da Nóbrega acumulou uma invejável experiência nas esferas pública e privada. Ele atuou como ministro da Fazenda, consultor técnico e chefe da divisão de análise de projetos do Banco do Brasil, além de ter sido membro de conselhos administrativos de empresas no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo do European Brazilian Bank, Eurobraz, em Londres, publicou os livros O Brasil em transformação e O futuro chegou e, em 2013, recebeu o prêmio de Economista do Ano, concedido pela Ordem dos Economistas do Brasil. Em entrevista exclusiva ao Correio Braziliense, Nóbrega analisa o cenário político, econômico e eleitoral e fala sobre as cicatrizes deixadas pela crise dos últimos anos.

 

Passada a fase mais difícil da crise, é possível afirmar que o Brasil atravessou bem a recessão e deixou o pior para trás?

A travessia foi melhor do que se poderia esperar diante do tamanho da recessão, a pior da história. Isso se explica por três fatores inexistentes simultaneamente em episódios recessivos do passado. O primeiro foi a situação confortável do balanço de pagamentos, o nível de reservas internacionais e a capacidade de intervenção do Banco Central para evitar excessiva volatilidade nos mercados de câmbio. Isso evitou desvalorizações cambiais sem controle, que em outros períodos impactaram a inflação e obrigaram o Banco Central a elevar substancialmente a taxa de juros, o que agravava o processo recessivo.

 

E o segundo fator?

O segundo foi a solidez do sistema financeiro, que em grande parte se deve à competente regulação do Banco Central, uma das melhores, senão a melhor, dos países emergentes. Durante a recessão, nenhum banco quebrou. No passado, falências bancárias contribuíam para retrair a oferta de crédito, piorando a situação da atividade econômica. Finalmente, a existência de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e os Benefícios de Prestação Continuada, que contribuem para proteger as famílias de baixa renda dos efeitos do desemprego em tempos recessivos. Quanto à sua origem, esta foi provavelmente a recessão inteiramente autoinfligida, fruto dos erros clamorosos da política econômica conduzida pelo PT após a saída do ministro Antônio Palocci e agravada pelas desastrosas intervenções do período da presidente Dilma Rousseff.

 

A reação econômica tem sido puxada por alguns setores importantes para o PIB, como o automotivo e a construção civil, mas há empresas chegando perto do limite da capacidade. Isso representa algum risco?

O crescimento atual resulta essencialmente do aproveitamento da capacidade ociosa na economia. Em algum momento, a disponibilidade de fatores de produção se esgota e o processo de recuperação chega ao fim. Por esse prisma, não é um crescimento sólido. É provável, felizmente, que possa continuar a ocorrer em 2019 e 2020, caso seja eleito um líder que infunda confiança e demonstre capacidade de conduzir um governo de reformas estruturais profundas. Esgotada a ociosidade, o crescimento dependerá de ganhos de produtividade e da expansão dos investimentos.

 

Qual será o papel das reformas na retomada?

Elas serão vitais, particularmente as da Previdência e a tributária. A primeira servirá para evitar o colapso fiscal decorrente de um endividamento público insustentável. A segunda, para resolver o caos tributário e acarretar ganhos de eficiência e produtividade. Além disso, será preciso criar o ambiente para forte investimento privado em infraestrutura, especialmente na de transportes. Sem essas ações, o país pode caminhar para a insolvência fiscal, a alta inflação e crises de confiança de efeitos desastrosos na economia e na sociedade.

 

A indefinição pode comprometer a recuperação?

As incertezas são típicas de períodos eleitorais no Brasil. Desta vez, elas tendem a ser maiores, pois existem riscos bem mais graves de eleição de um populista, de esquerda ou de direita, ou de uma celebridade sem a experiência e a habilidade necessárias a articular o apoio político ao seu programa de governo. A escolha do líder brasileiro tem dois momentos cruciais. Primeiro, o de ganhar as eleições. Segundo, o de governar. Não basta o candidato convencer o eleitorado de que é o melhor. Formar o governo, negociar com o Congresso e conquistar o apoio permanente da sociedade dependem de características pessoais formadas ao longo de anos de experiência no exercício de funções públicas e da atividade política. Um líder para conduzir um país complexo como o Brasil dificilmente surgirá de um único período eleitoral.

 

O governo do presidente Michel Temer se enfraqueceu com as derrotas nas aprovações das reformas e comprometeu sua credibilidade no mercado?

Creio que não. Os mercados já incorporaram a ideia de que a reforma será tarefa do próximo governo. As atenções estão voltadas agora para o processo eleitoral. Além disso, o Banco Central dispõe de instrumentos e competência para enfrentar crises. A não ser algo muito grave vindo do exterior, o país deve atravessar relativamente bem os meses que restam do atual governo.

 

A forte alta do dólar nas últimas semanas é um termômetro da desconfiança dos investidores internacionais em relação ao Brasil?

A alta do dólar tem origem em três fatores. Primeiro, a valorização é derivada da normalização da política monetária, que implica elevação da taxa de juros, inclusive para enfrentar eventuais pressões inflacionárias decorrentes do forte crescimento da economia. Segundo, a redução da taxa Selic, o que provoca a redução do diferencial entre o juro brasileiro e o americano, acarretando saídas de capital do país para países desenvolvidos, especialmente os EUA. Terceiro, a entrada no radar dos investidores do risco do processo eleitoral brasileiro. Por ora, eu diria que o fator mais importante é o primeiro. Isso implica que dificilmente o dólar vai voltar ao nível de R$ 3,15 observado há seis meses atrás.

 

O Banco Central vai vencer a batalha dos juros bancários?

O Banco Central tem procurado implementar uma agenda para reduzir o spread bancário, o que é louvável, mas não controla nem pode atuar em todos os fatores que explicam o spread bancário no Brasil. Perto de 70% do spread decorre de custos de impostos e da inadimplência. O BC pouco ou nada pode fazer nesses campos. Nenhum país relevante tributa transações financeiras como o Brasil com impostos que incidem no crédito (IOF) e na captação de recursos (PIS e Cofins). A taxa de recuperação de crédito é de apenas 16%, a mais baixa do mundo. Isso implica pesados gastos com provisões para devedores duvidosos e perdas consideráveis para os bancos, que influenciam a taxa de juros ao tomador final e, assim, o spread.

 

Como se resolve esse problema?

Não há saída fácil, pois ele deriva de atitudes anticredor do Judiciário. Mais de 80% dos juízes acham que seu papel é fazer justiça social, e não fazer cumprir a lei e os contratos. É difícil e demorado efetuar a execução de dívidas e garantias. Em alguns estados, como o Rio Grande do Sul, o preconceito contra credores é bem maior. Uma medida que pode contribuir para a redução do spread é a aprovação do projeto de lei do cadastro positivo, mas isso depende do Congresso. Fala-se muito sobre a concentração bancária no Brasil, mas dificilmente ela pode ser considerada a causa básica dos altos spreads bancários. Tanto a concentração quanto a rentabilidade dos bancos não diferem muito das observadas em outros sistemas financeiros, inclusive nos países desenvolvidos.

 

Quais são os indicadores macroeconômicos que merecem mais comemoração e quais são os que ainda preocupam?

Merecem comemoração a baixa taxa de inflação e a redução da taxa Selic. Preocupa a tendência explosiva da relação entre a dívida pública e o PIB, que é o principal indicador de solvência do governo. Sem a reforma da Previdência e outras igualmente importantes, como a destinada a atacar a excessiva rigidez do gasto, o Brasil caminhará inexoravelmente para uma desastrosa incapacidade de o governo servir sua dívida. A rigidez, sem paralelo no planeta, se explica essencialmente pela insustentabilidade dos regimes previdenciários, pelos gastos de pessoal e pela vinculação de receitas a despesas, que é uma forma primitiva de estabelecer prioridades, mas que goza de grande prestígio na classe política brasileira e nos grupos de pressão. Agora mesmo se fala numa nova vinculação, em favor da segurança pública.

 

O Brasil continuará sendo ajudado pela alta liquidez e otimismo do mercado internacional?

A história já provou que ambientes internacionais benignos não são duradouros. Em alguns momentos, eles foram a causa de bolhas especulativas que desaguaram em crises internacionais graves. Diz-se que a única afirmação correta sobre uma crise internacional é a de que ela não será a última. Os países que mais bem aproveitaram esses momentos foram os que fizeram reformas enquanto as coisas andavam bem. Como se fala, a hora de consertar o telhado é quando o tempo está bom. São esses países que também são mais capazes de fortalecer seus fundamentos e se preparar para enfrentar a crise que virá. Não é, infelizmente, o caso do Brasil. A maré internacional coincidiu com momentos de séria crise política, social e econômica, que costumam dificultar o processo de reformas.

 

Frases

“Mais de 80% dos juízes acham que seu papel é fazer justiça social e não fazer cumprir a lei e os contratos. No Brasil, é difícil e demorado efetuar a execução de dívidas e garantias”

“As incertezas são típicas de períodos eleitorais no Brasil. Desta vez, elas tendem a ser maiores, pois existem riscos bem mais graves de eleição de um populista, de esquerda ou de direita”

“A recessão foi fruto dos erros clamorosos da política econômica conduzida pelo PT após a saída do ministro Antônio Palocci e agravada pelas desastrosas intervenções do período da presidente Dilma Rousseff”