Título: Espiões monitoravam brigas
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Fonte: Correio Braziliense, 09/04/2012, Política, p. 5

O trabalho de agentes da ditadura em monitorar integrantes de movimentos de esquerda asilados no exterior resultou em registros das divergências na Aliança Libertadora Nacional (ALN) após a morte de seu maior líder, Carlos Marighella, numa emboscada em São Paulo, em 4 de novembro de 1969. Documentos confidenciais do Centro de Informações do Exército (CIE) produzidos há 40 anos e cujo teor vem sendo divulgado pelo Correio desde domingo mostram que a ALN desestabilizou-se após a perda do grande líder. Joaquim Câmara Ferreira , o "Velho" ou "Toledo", jornalista e ex-membro do PCB desde a década de 1940, dirigiu a ALN a partir do assassinato de Marighella até a sua morte, em 23 de outubro de 1970, delatado por José Silva Tavares, o "Severino", que teria sido torturado após ser preso.

Em relatório confidencial datado de 3 de abril de 1972, os espiões do CIE lotados em Havana percebiam a existência de um grupo "conhecido em Cuba como uma turma que criava muitos casos, atrapalhando os planejamentos com detalhes insignificantes, expedindo documentos quase todos os dias sem qualquer resultado prático". Desse grupo, segundo o relatório, começou a ideia de uma dissidência informal com Ruy Carlos Vieira Berbert e Boanerges de Souza, depois ampliada com Carlos Eduardo Pires Fleury e Jeová de Assis Gomes. "Dessa dissidência, com o grupo que já retornou ao Brasil, constituiu-se o que se conhece hoje como Grupo da Ilha, todos oriundos da ALN, mas já dissidentes desde a partida de Cuba", revelam os espiões.

O relatório confidencial chega a dar detalhes internos da organização esquerdista dissidente, como o destino dos guerrilheiros em território nacional. "Dividiram-se inicialmente em dois grupos, sendo que o encarregado da obtenção de fundos ficava em São Paulo, onde realizaram várias ações de expropriação, e o outro grupo internou-se no interior do Brasil, particularmente no nordeste de Minas Gerais, na Região Centro-Oeste da Bahia e no norte de Goiás."

Com riqueza de detalhes, o relatório militar diz que Toledo "assumiu a direção e evitou que a ALN rachasse". Ele teria recebido "muito dinheiro dos cubanos" e regressou ao Brasil, com Zilda Xavier Pereira. Toledo teria chegado ao Rio de Janeiro pelo Aeroporto do Galeão, enquanto Zilda "veio por outro esquema e deve ter entrado pela fronteira". Os militares relatam que Zilda foi recebida pelo marido, João Batista Xavier Pereira, mas "caiu" (foi presa) logo em seguida, "enquanto Toledo tentava formar uma frente com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), chegando mesmo a ir ao Vale do Ribeira, onde forneceu armamentos para a VPR". "Após a fuga de Zilda do hospital do Rio, ela foi para São Paulo, onde ficou guardada com Toledo (provavelmente em Campinas), até seguir para o Rio Grande do Sul, por onde saiu do Brasil, indo para o Uruguai, Argentina e Paris, chegando em Cuba no fim de agosto de1970."

Os militares também traçaram os perfis das lideranças que disputavam a hegemonia no grupo. "Como conclusão, se a direção estava entre uma mulher (Zilda) sem tradição, semialfabetizada, que sequer fora da direção regional e que sempre colocava em primeiro plano o zelo pela família, do outro lado havia um militante famoso (Toledo), dotado de alto nível intelectual e cultural, imensamente vivido, tido como o sucessor de Marighella pela imprensa"

Após a morte de Toledo, surgiram em 1971 duas dissidências da ALN que tiveram vida efêmera: o Movimento de Libertação Popular (Molipo) e a Tendência Leninista (TL). O Molipo foi extinto com a prisão ou com a execução sumária ou sob torturas da maioria de seus membros. A TL mal chegou a se estruturar no país.

Repercussão O documento divulgado com exclusividade pelo Correio é para muitos a prova de que há muita coisa a ser esclarecida e ainda oculta sobre o regime militar. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que soube da existência do documento na última quarta-feira pela reportagem, foi direto: "Isso indica a relevância que a Comissão da Verdade terá na apuração de fatos daquele período triste da história brasileira", afirmou.

A instalação da comissão ainda depende da indicação de seus integrantes pela presidente Dilma Rousseff, que mantém a montagem do colegiado guardada a sete chaves. O senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), citado no documento do Exército, considera a demora absurda: "Para que pressa na votação se não era para instalar? A comissão foi aprovada em novembro e até hoje não existe. É mais uma prova de que nada funciona, da paralisia governamental que o país vive", comentou. O relatório encontra-se entre os documentos secretos guardados no Arquivo Público do Rio de Janeiro.

Defensor da luta armada

Carlos Marighella fundou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), um dos principais movimentos de resistência ao regime militar, em 1966, ao sair do Partido Comunista do Brasil (PCB). O grupo defendia a luta armada e era o que, proporcionalmente, mais tinha integrantes mulheres. Filho de um operário e neto de escravos, Marighella abandonou o curso de engenharia civil para se mudar para São Paulo e reorganizar o PCB em 1936. Foi preso pela primeira vez em 1932, aos 21 anos, por escrever e divulgar um poema com críticas ao interventor da Bahia à época, Juracy Magalhães. À frente da ALN, Marighella se tornou o homem mais procurado pelo regime.