O globo, n. 30932, 15/04/2018. País, p. 8

 

Em sete anos, absolvições revelam falhas da justiça

Renata Mariz

15/04/2018

 

 

Entre 2009 e 2016, STF anulou nove casos de condenados em tribunais de instâncias inferior

Condenações por sonegação fiscal, tráfico de drogas, assalto a banco, porte de arma de fogo e exercício ilegal de profissão estão entre uma minoria de sentenças anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), último degrau da Justiça brasileira, em pouco mais de sete anos. É o que aponta detalhamento feito pelo GLOBO com base nas nove absolvições registradas de 2009 a 2016, ou 0,035% dos 25.707 recursos extraordinários em matéria criminal julgados no período, segundo dados apresentados pelo ministro Luís Roberto Barroso.

O mapeamento dos casos revela que pessoas foram inocentadas pelo Supremo por razões alheias ao Judiciário, como mudanças na lei, mas também por erros graves das instâncias inferiores, como falta de provas válidas.

Esse foi o motivo de duas das nove absolvições analisadas. Em um dos casos, Lucimar Aparecido Cardoso e Caroline Correa Souza, condenados a mais de quatro anos por tráfico de drogas em Macatuba (SP), foram inocentados. O ministro Gilmar Mendes considerou que as provas usadas na sentença não demonstravam que o casal guardava entorpecentes na própria residência para auxiliar uma quadrilha em troca de parte da substância para consumo próprio.

Gilmar rebateu as provas consideradas pela Justiça: interceptações telefônicas, uma testemunha e confissão extrajudicial, na polícia. Ele disse “ser possível utilizar elementos produzidos no inquérito, mesmo confissões, para embasar uma suposta condenação, desde que eles não estejam isolados no acervo probatório”. E destacou que “o rompimento do estado de inocência de um indiciado, de forma que resulte em uma condenação, deve se basear em elementos probatórios concretos produzidos em juízo”.

 

ASSALTO A BANCO

A falta de provas também levou à absolvição de Vagner Augusto Pereira. Ele foi inocentado em primeiro grau da acusação de ter roubado um banco em Belo Horizonte, no fim da década de 1990, mas condenado na segunda instância a nove anos e 11 meses. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a sentença, levando a Defensoria Pública de Minas Gerais a recorrer à Suprema Corte.

— Era um caso tão absurdo, amparado numa confissão que o acusado alegava ter feito sob tortura na delegacia, que nós decidimos levar adiante — diz Andréa Abritta Garzon, defensora que atuou no processo.

Em decisão de 2010, a ministra do STF Cármen Lúcia absolveu Vagner. Segundo ela, não houve na sentença que o condenou “qualquer referência a prova colhida em juízo capaz de confirmar as realizadas na fase inquisitorial”. “Ao contrário, o tribunal de origem asseverou expressamente que ‘algumas das provas aqui colacionadas, por razões diversas, não passaram pelo crivo do contraditório’”, assinalou a presidente do STF.

Em três casos, houve um aparente desconhecimento das leis nas instâncias inferiores. José Francisco Leite, de 56 anos, até tentou avisar que, mesmo sem carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, poderia atuar como assistente em juizados especiais federais, conforme permissão expressa numa lei federal. Não adiantou. A magistrada que conduzia a audiência, na qual Leite fazia a defesa de um parente, disse que o denunciaria por exercício ilegal da advocacia.

— Eu falei: Excelência, tem até uma cartilha sobre o funcionamento dos juizados especiais. Nessa hora, ela me mandou calar a boca e disse que eu poderia sair preso de lá. Foi uma humilhação — lembra Leite.

Apesar de aborrecido, Leite diz que deixou a audiência tranquilo por considerar a tal denúncia “natimorta”. Meses depois, surpreendeu-se com um chamado para depor na polícia. O processo foi remetido à Justiça do Distrito Federal, onde Leite acabou condenado em primeira e segunda instâncias. Ele conta ter sido aconselhado a aceitar a pena alternativa à prisão, mas quis levar adiante os recursos. Perdeu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e apelou ao Supremo. Na sentença, o ministro Luiz Fux absolveu Leite, lembrando que uma lei de 2001, portanto oito anos antes da denúncia, “faculta às partes a designação de representantes para a causa, advogados ou não, no âmbito dos juizados especiais federais”.

Apesar de não ter ficado preso devido à pena baixa, Leite lembra o quanto é difícil dormir com uma condenação criminal:

— Foram quatro anos com meu nome jogado no rol dos culpados. Falta ao Judiciário ter um mínimo de cuidado com os processos, analisando caso a caso. Mas a Justiça é apenas “carimbatória” no país.

 

O FATOR HABEAS CORPUS

Os dados de absolvição apresentados por Barroso não incluem habeas corpus, meio pelo qual pedidos variados da defesa também são deferidos no Supremo. Barroso diz saber que a taxa de sucesso, embora não haja pesquisa para quantificar, é maior no caso de habeas corpus do que nos recursos extraordinários. No entanto, o ministro defendeu que o índice de 0,035% de reversão da condenação no universo pesquisado não justifica modificar a jurisprudência atual, que permite a prisão após segunda instância.

O defensor público Rafael Raphaelli, que atuou em dois dos nove casos de absolvição, contesta o raciocínio. Ele ressalta que os números seriam mais expressivos se a análise levasse em conta o julgamento de habeas corpus. E considera absurdo que pessoas tenham de chegar à mais alta Corte para provar a inocência.

— Era para ser nenhum (caso). Ter nove casos na última instância não revela que são poucos, revela que há falhas — afirma o defensor público.

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Mesmo doentes, presos comuns ficam na cadeia

Luiza Souto

15/04/2018

 

 

Benefício concedido a Picciani e Maluf não é a regra no sistema carcerário

Cleiton, de 41 anos, está entrevado numa maca do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo. Com tetraplegia incompleta desde que levou um tiro, em 2001, ele busca o direito à prisão domiciliar. As sequelas são irreversíveis. Mas seus pedidos de indulto humanitário e de prisão domiciliar foram negados. A Justiça entende que, por ter cometido homicídio, um crime hediondo, Cleiton não pode ser libertado e deve ser atendido dentro do sistema carcerário, ainda que precise de auxílio 24 horas.

Assim como ele, Francisco era um homicida. Morreu no ano passado aos 68 anos no mesmo local, dois anos depois de um AVC que deixou sequelas neurológicas irreversíveis. Pedidos para que fosse para casa também foram negados.

A situação se repete em várias prisões do país. Centenas de doentes permanecem encarcerados — ainda que não tenham mais saúde para cometer crimes. Suas situações contrastam com presos ilustres, em geral políticos, encarcerados por crimes de corrupção. Presos como o deputado estadual Jorge Picciani (PMDB) e o deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) acusados, entre outros crimes, de lavagem de dinheiro, conseguiram o benefício de cumprir pena fora da cadeia.

Preso em dezembro na Papuda, em Brasília, Maluf foi liberado em 28 de março para o hospital. Desde então, está internado com trombose venosa profunda, incontinência urinária, metástase óssea na região sacral decorrente do câncer de próstata, perda de força muscular e atrofia nas pernas.

Detido desde novembro, Picciani foi liberado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 27 de março para cumprir prisão domiciliar — aos 63 anos, ele tem câncer na bexiga. Assim, Picciani retomou sua vida num condomínio de luxo na Barra da Tijuca. Antes da decisão da Segunda Turma do Supremo, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) havia negado o pedido.

Os juízes não têm um entendimento uniforme sobre o assunto. São inúmeros os casos de não concessão da prisão domiciliar ou do indulto. Quando um preso está extremamente debilitado, sua defesa tem dois caminhos: pedir o indulto humanitário, que é o perdão total da pena, ou a prisão domiciliar. Para esta, a pessoa deve ter diagnóstico de doença grave.

O indulto, concedido por decreto presidencial em 25 de dezembro, pode beneficiar o preso diagnosticado com doença grave e permanente — paraplegia, tetraplegia ou cegueira — e que necessite de cuidados que não possam ser prestados no presídio, e não tenha cometido crime hediondo. Mas a decisão cabe ao juiz.

Foi o que aconteceu com José Lucas, de 24 anos. Preso por homicídio doloso em Campinas, sofreu trauma cranioencefálico num acidente, e o advogado Valdeci Eugênio pediu seu perdão em novembro de 2016. Oito meses depois, o juiz concedeu.

— A situação de extrema gravidade de saúde do prisioneiro deve se sobrepor à questão da pena que lhe foi imposta — opina Eugênio, que trabalha na Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel (FUNAP), vinculada à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária de São Paulo. Em parceria com a Defensoria Pública do Estado, ele analisa casos de presos condenados e formula os pedidos de indulto humanitário ou prisão domiciliar.

O juiz Sidinei José Brzuska, da Fiscalização dos Presídios da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre e da Região Metropolitana, diz que a regra naquele estado é “não tirar algema de morto”.

— Temos, inclusive, muitos jovens que dão entrada baleados e concedemos a domiciliar, ainda que por tempo determinado. Analisamos caso a caso. Não esperamos a pessoa morrer para soltá-la — afirma Brzuska.

 

EM SÃO PAULO, 484 MORTES

Dados da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo mostram que, em 2017, 484 presos morreram nos presídios de doença. Os óbitos variam entre desnutrição, Aids, tuberculose, câncer entre outros. Por meio de nota, a secretaria afirma que todos têm atendimento à saúde garantido nas unidades prisionais do estado e que a maior parte dos casos de morte se deu em hospitais, durante atendimento.

No Rio, morreram 42 presos desde o início de 2018, segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária. A pasta informa que tem ambulatórios médicos em todos os presídios, além de cinco hospitais penitenciários.