O globo, n. 30943, 26/04/2018. Sociedade, p. 26

 

 

‘Nenhum país reduziu o consumo descriminalizando’

Torquato Jardim

26/04/2018

 

 

Responsável pela política sobre entorpecentes no Brasil, ministro da Justiça defende que ‘continue havendo a repressão’

-BRASÍLIA- Contrário à descriminalização da maconha, favorável à internação em casos graves e defensor das comunidades terapêuticas, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, condena o “maniqueísmo” do debate sobre drogas no Brasil. Desde que parte significativa de sua pasta foi absorvida pelo novo Ministério da Segurança Pública, sobrou espaço para se dedicar à política nacional sobre entorpecentes, cujas bases foram aprovadas recentemente em resolução assinada por ele. Ao GLOBO Torquato detalha as próximas ações, como o anúncio feito ontem pelo governo de 20 mil novas vagas em comunidades terapêuticas, e se posiciona sobre as principais controvérsias em torno do tema.

Qual é a política do governo em relação às drogas?

O que encontrei foi um maniqueísmo pró e contra a intervenção do Estado, pró e contra a legalização. Sou contra os dois polos. Há uma política nacional a ser pensada, sem partidarismo, sem sectarismo, sem ideologia. Temos que conjugar todos os esforços harmonizáveis para combater a questão da droga. Se é internação compulsória, se é redução de danos, se é comunidade terapêutica, eu não entro nesse debate. Meu jargão não é o deles.

E qual será o foco da política de atendimento?

Minha preocupação é harmonizar os diversos métodos de recuperação, porque não posso crer que a sociedade queira a liberdade total de uso, como alguns pretendem. Esse confronto intelectual não cabe na administração pública. O Estado tem que agir para preservar a vida. Há dependentes que não reagem com outros métodos de tratamento, com apoio psicológico e psiquiátrico, apoio da família, terapia, redução de danos, porque algo falhou. Então, em vez de morrer, interna. Qual o período? O médico é que diz.

Há muita crítica à internação compulsória quando se fala de uma política sobre drogas.

O médico que não internar compulsoriamente quem está em risco de vida comete o crime de omissão de socorro, está no Código Penal. O Estado tem que intervir para salvar a vida. Qual será o método? Os médicos é que vão decidir. Não é uma decisão acadêmica ou filosófica nossa. Não é uma política de solução geral.

Existe consenso no uso de medidas extremas para salvar vidas, mas é uma minoria dos dependentes que se encontra em risco de morrer. O que fazer com a maioria?

A política do ministério é ser eficaz caso a caso. Para uns, a comunidade terapêutica será suficiente. Outros precisarão de psicólogo; outros, de psiquiatra; e outros, de internação. Cada setor do governo vai fazer o seu pedaço. Meu pedaço, com apoio de outros ministérios, é o das comunidades terapêuticas. Vamos financiar 20 mil vagas, buscando entidades públicas e privadas que se proponham a tratar cientificamente e responsavelmente os dependentes químicos. E fazer uma campanha em meados de junho de prevenção, para os adolescentes.

O senhor não teme focar a política em comunidades terapêuticas, que são frequentemente denunciadas por maus-tratos e tratamentos sem embasamento científico?

O edital para seleção vem detalhado, com critérios para mensurar a competência, a correção do trabalho que está sendo feito. E os médicos vão supervisionar, sejam os da comunidade terapêutica ou contratados. Tem o Ministério Público para supervisionar, os agentes das secretarias de Saúde e outros envolvidos.

O uso de maconha deveria ser descriminalizado no Brasil?

Não. Nenhum país resolveu descriminalizando. Há uma imensa literatura pró e contra. Quem tem que fazer essa discussão é o Congresso Nacional.

Não é o Supremo Tribunal Federal (que já iniciou julgamento sobre descriminalização de porte de drogas para consumo próprio)?

Não, porque decisões de 6 a 5, de 8 a 3, não convencem. Acho que o grande debate não se põe numa casa de 11, mas no Congresso Nacional. Eles é que têm que encontrar a medida.

Por que o senhor é contra a descriminalização?

Nenhum país reduziu o consumo de drogas descriminalizando. Há uma grande experiência nos EUA que precisa ser observada. O estado de Washington, que perdeu muitas empresas, liberou a maconha para atrair turistas. A Califórnia recentemente liberou a maconha para entretenimento. Temos que ver quais são as consequências de médio e longo prazo nesses países. No Uruguai, só aumentou o tráfico e a violência. Não há receita pronta. Tem que ver o que funcionou aqui, o que não funcionou ali.

Então o consumo deve continuar sendo crime?

Tem que continuar havendo a repressão, a figura criminógena. Agora não é definir o crime dessa ou daquela maneira, o mais importante é ter uma política firme de apoio e recuperação. E implica também, do lado da segurança pública, uma repressão eficaz ao tráfico.

A lei atual não leva muitos usuários a serem confundidos com traficantes?

Mas nenhum país resolveu dessa maneira (descriminalizando). O que a jurisprudência poderia colocar com mais clareza é qual o volume de maconha que, você levando, é uso próprio e não é tráfico. Atualmente, alguns ministros do Supremo consideram 25 gramas. O problema é que se essa pessoa faz dez viagens por dia, são 250 gramas, aí virou traficante.

A manutenção da legislação atual não leva muita gente às prisões desnecessariamente?

Não necessariamente. Com um Ministério Público e uma Defensoria Pública engajados, você pode ter outros mecanismos antes do encarceramento. O juiz pode determinar a internação numa comunidade terapêutica ou outro tratamento. E há casos que são mesmo de encarceramento, quando é um criminoso contumaz. É preciso diferenciar o que está mais comprometido com o consumo e o que está mais com a distribuição e venda. Há muitos magistrados fazendo isso pelo Brasil.

 

É ISSO MESMO?

 

‘Não posso crer que a sociedade queira a liberdade total de uso’

VERDADEIRO, MAS

Pesquisas recentes do Datafolha e Ibope apontam que a maioria dos brasileiros é contrária à liberação da maconha ou não acredita que a legalização reduziria crimes. Nos dois casos, a marca ultrapassa os 60%, mas a participação desse grupo diminuiu. Segundo o Datafolha, em novembro de 2017, 66% declararam que fumar maconha deve continuar proibido. Em 1995, eram 81%.

 

‘No Uruguai, só aumentaram o tráfico e a violência’

NÃO É BEM ASSIM

Em 2013, um ano antes da descriminalização, houve 260 homicídios no país, média de 7,5 para 100 mil habitantes. Em 2017, foram 283 mortes, e a taxa subiu para 8,1. O índice de homicídios, no entanto, não subiu ano a ano. Em 2016, por exemplo, caiu em relação a 2015. Os roubos subiram 7,7%, de 2013 para 2017. Porém, em 2017, houve queda de 4,5% frente a 2016. Desde a nova lei, os furtos cresceram 13%, e tiveram alta ano a ano. Não há estudo oficial sobre os números do tráfico ou que relacione a variação dos crimes acima à legalização do uso de maconha.

 

‘Atualmente, alguns ministros do Supremo consideram 25 gramas’

NÃO É BEM ASSIM

Em 2015, três dos 11 ministros do STF votaram na ação sobre a constitucionalidade da criminalização do porte de drogas. O julgamento foi interrompido. Apenas Luís Roberto Barroso definiu no voto a proposta de 25 gramas como critério para definir usuário de maconha. O tema não foi discutido.