Valor econômico, v. 18, n. 4444, 19/02/2018. Política, p. A8.​

 

 

Decreto é inconstitucional, diz jurista

Bruno Villas Bôas

19/02/2018

 

 

O decreto de intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, anunciado na sexta-feira pelo presidente Michel Temer, é inconstitucional por atribuir uma natureza militar ao cargo de interventor. A avaliação é da especialista em Direito Constitucional Eloísa Machado de Almeida, professora da FGV Direito em São Paulo.

"É uma atrocidade. A medida substitui uma autoridade civil e política, sujeita à jurisdição civil comum, por uma autoridade militar. Mas o interventor não pratica só atos em resposta a outro comando, como nas Forças Armadas. Ele pratica atos que são de atribuição do governador, dos secretários e também de comandantes de polícia", disse.

Para ela, ao definir o cargo como militar, o governo gerou ainda uma atuação automática das Forças Armadas na segurança do Rio, o que também seria inconstitucional. Por regra, as Forças Armadas atuam por meio de requisições específicas e extraordinárias, como nos Jogos Olímpicos do Rio e na visita do Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude, em 2013.

Por trás da "militarização" do cargo estaria uma tentativa do governo de blindar o general Walter Souza Braga Netto, que estará responsável pela segurança pública do Rio. Desta forma, o general Braga só responderá por seus atos como interventor à jurisdição militar, inclusive em casos abuso de poder e eventuais denúncias de corrupção.

"Isso é grave se considerarmos ser a primeira intervenção federal decretada pela Constituição de 88. É muito ruim que a primeira intervenção tenha uma natureza militarizada. Não é à toa que as pessoas estão preocupadas com o desenho que foi feito", disse a professora de Direito Constitucional da FGV.

O Congresso Nacional deve votar o decreto hoje à noite ou amanhã pela manhã, conforme informou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM). Para Eloísa, o Congresso Nacional terá então a oportunidade de vetar trechos do decreto ou sugerir mudanças em sua redação. Na avaliação dela, o decreto não tem validade até a apreciação pelos parlamentares, conforme o artigo 36, parágrafo único, da Constituição.

A intervenção federal é uma medida considerada tão grave - por flexibilizar a autonomia federativa - que impede a ocorrência de uma reforma constitucional em sua vigência. Por isso, o presidente Michel Temer disse, an sexta-feira. que eventualmente poderá interromper a intervenção no Rio para aprovar a reforma da Previdência.

Eloísa explicou que o objetivo dessa regra é evitar que um presidente realize uma intervenção federal como "ameaça" para obter votos necessário para uma eventual emenda constitucional. Embora não duvide da existência de razões para a intervenção no Rio, ela disse que não existe até o momento transparência sobre as razões para o decreto.

"Interromper a intervenção para aprovar a reforma da Previdência mostra falta de seriedade e levanta questões sobre o real motivo do uso dessa intervenção", disse ela. "Em situações semelhantes, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem considerado um desvio de finalidade suspender o efeito de um decreto para depois retomá-lo. Dificilmente ele conseguiria retomar a intervenção e daria bastante espaço para questionamentos sobre a votação da reforma".