Valor econômico, v. 18, n. 4444, 19/02/2018. Opinião, p. A13.​

 

 

Miolo ausente

David Kupfer

19/02/2018

 

 

Em 7 de fevereiro último o governo federal baixou o decreto que regulamenta a Lei 13.243 de janeiro de 2016, conhecida como Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (MLCTI). O novo marco legal da inovação tem como principais objetivos reduzir a burocracia, simplificar processos administrativos e financeiros nas instituições públicas de pesquisa e, fundamentalmente, trazer segurança jurídica para que os diversos atores públicos e privados do ecossistema de inovação brasileiro possam interagir em maior intensidade e profundidade.

Por exemplo, um dos principais temas contemplados no MLCTI é a permissão para parcerias público-privadas em iniciativas de inovação que envolvam patrimônio público, seja na forma de aportes de capital, da cessão de ativos imobiliários ou ainda do compartilhamento de instalações.

Por si só, o término de um processo legislativo tão difícil e demorado pode ser dado como um fato auspicioso. Mais ainda quando se sabe que o caminho conduzido no Congresso Nacional, iniciado com a Lei da Inovação em 2004 (10.973/2004), envolveu até mesmo uma emenda constitucional (85, de fevereiro de 2015) que fez com que o termo "inovação", até então não mencionado, passasse a contar com quinze inserções na Carta Magna brasileira. A sensação é de que, contrariando o bom senso, o processo legislativo se viu aprisionado em uma busca minuciosa de precisão na definição de quem são os atores e quais são os objetos da inovação.

(...)

A armadilha que é tentar enquadrar o "novo" é o principal motivo para que o decreto do MLCTI tenha saído com 54 páginas ou, mais precisamente, 1.618 linhas - e sabe-se lá quantas entrelinhas. Difícil crer que uma peça legal tão extensa vá conseguir cumprir adequadamente a sua missão de prover segurança jurídica à atividade.

Por certo que é prematuro avaliar a funcionalidade que o novo MLCTI irá proporcionar. Nesse momento, porém, mais importante é reconhecer que o desfecho do processo de regulamentação sinaliza que, mal ou bem, a fase nascente da inovação como objeto de política pública pode ser dada como encerrada. Essa fase traduziu-se no conceito de se colocar o "I" de Inovação onde antes só havia o "C&T" da Ciência e Tecnologia e, a partir daí, redistribuir, agora por três, os recursos que eram destinados apenas aos dois objetivos originais. Esse caminho pode ter constituído o modelo possível para dar visibilidade à inovação, mas não é nem tem como ser capaz de pavimentar o tão necessário e desejado salto de resultados. Um novo modelo se faz necessário.

Ciência não "vira" inovação como decorrência de um marco legal azeitado. Essa pode ser uma condição necessária, mas certamente não suficiente. A ideia de que existe represado em Universidades e Institutos de Pesquisa um acervo de conhecimentos transformáveis em inovação prontos para serem utilizados pelas empresas é, mais do que irrealista, imprópria. Ciência vira inovação como consequência de estratégias e ações executadas por um setor empresarial robusto e dinâmico, capaz de identificar, desenvolver e explorar as oportunidades trazidas pelo avanço do conhecimento, esse sim proporcionado pela pesquisa básica ou aplicada.

E isso depende de forma cada vez mais crucial da abrangência e capacitação disponibilizadas por uma enorme gama de instituições intermediárias, públicas e privadas, que se encarregam do fornecimento da infraestrutura tecnológica básica, dos serviços técnicos de apoio, do suporte de serviços especializados diversos, dentre outros. Em conjunto, formam o miolo de um ecossistema de inovação cuja incipiência, quase ausência, no Brasil, e resguardadas as notáveis exceções, dá título a esse artigo.

No passado, a fragilidade desse miolo era minorada pela presença de grandes centros de pesquisa de empresas estatais como o Cenpes (Petrobras), o Cepel (Eletrobras) ou o CPQD (Telebrás). Privatizações e concessões mal feitas, porque não exigiram dos adquirentes e concessionários qualquer contrapartida em esforço tecnológico, e as sucessivas reviravoltas interpostas ao modelo de financiamento à P&D no Brasil quebraram a espinha dorsal desse aparato institucional. Mesmo a Embrapa, a principal sobrevivente desses tempos, sempre citada como um caso de sucesso no campo da inovação na agroindústria, vê-se hoje diante do risco de se tornar uma sombra de si mesma diante do quadro de dificuldades que vem enfrentando.

A observação da experiência internacional recente tem mostrado o grande esforço que os países líderes têm empreendido visando fortalecer os encadeamentos entre os agentes e, principalmente, adaptar os ecossistemas às novas exigências trazidas pelas características mais transversais do progresso técnico na atualidade: a convergência de tecnologias; a integração dos sistemas produtivos e o esmaecimento das fronteiras entre as diferentes bases de conhecimento. Com a ciência e tecnologia numa ponta, as empresas produtivas na outra e sem um miolo vigoroso o ecossistema de inovação brasileiro tem parcas chances de se consolidar e muito menos de enfrentar esses desafios.

Portanto, uma nova fase na qual a inovação deixe de ser um apêndice da política de Ciência e Tecnologia e passe a dispor de institucionalidade própria deve ser inaugurada. Está mais do que na hora de reorganizar a interação entre as instituições líderes do processo decisório das políticas de inovação para que os objetivos nacionais de desenvolvimento econômico e social sejam os vetores das escolhas que necessariamente terão que ser feitas.

A inovação está em tudo e o simples reconhecimento desse fato é suficiente para se concluir que é mais efetivo regulá-la diretamente do que buscar explicitá-la em cada um de todos os infindáveis setores da vida econômica em que ela está inserida.

 

David Kupfer é diretor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). Escreve mensalmente às segundas-feiras. E-mail: gic@ie.ufrj.br. As opiniões aqui expressas são do autor e não da instituição.