O globo, n. 30939, 22/04/2018. País, p. 3

 

Refazendo as contas

Igor Mello

22/04/2018

 

 

Após prisão de conselheiros, mais que dobra o valor das licitações canceladas pelo TCE-RJ

Um mês depois do furacão da Lava-Jato varrer o Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE-RJ) — com a prisão de cinco dos sete conselheiros no ano passado —, a corte se reuniu para discutir o primeiro processo importante após o escândalo de corrupção descortinado pelo ex-presidente e delator Jonas Lopes. Eram apenas quatro conselheiros em plenário no dia 30 de abril de 2017: a presidente Marianna Montebello Willeman, única restante, e três substitutos.

Por unanimidade, eles rejeitaram as contas do governo do estado de 2016, medida que não era adotada desde 2002. Na ocasião, o Executivo alegou dificuldades com as contas devido à crise econômica. Foi o primeiro sinal de uma mudança. Ao final do ano passado, estava claro que as análises ficaram mais rígidas: R$ 4 bilhões deixaram de ser gastos em 66 editais de licitação cancelados após o TCE-RJ flagrar algum tipo de irregularidade, o que significa um crescimento de 125% em relação ao ano anterior, na gestão dos conselheiros que foram presos, quando esse tipo de ação poupou R$ 1,8 bilhão.

Há também as concorrências em que o TCE-RJ conseguiu redução de custos em municípios e no governo do estado. Os valores poupados em gastos suspeitos cresceram 90,7%: de R$ 65,7 milhões, em 2016, para R$ 125,3 milhões. Oficialmente, o TCE-RJ atribui o ganho de eficiência à mudança de metodologia e ao uso de ferramentas de big data na identificação de irregularidades. Servidores, no entanto, adicionam à equação o fim das amarras políticas sobre o corpo técnico.

No lugar da análise apenas formal da documentação de governos, o tribunal passou a privilegiar auditorias in loco na execução dos contratos. Segundo técnicos, um exemplo dessa mudança é a reforma do Maracanã. O exame documental de 17 contratos e atos administrativos da obra não constatou irregularidade. Após nova auditoria, o tribunal encontrou superfaturamento de R$ 211 milhões. Desde o segundo semestre do ano passado, os técnicos da corte usam em larga escala sistemas que cruzam bases de dados internas e externas — que englobam desde decisões anteriores até registros empregatícios e dados contábeis de empresas contratadas, como composição societária e capital social — para identificar contratos com maior risco de irregularidades.

 

DE 69 CIDADES, 51 REJEITADAS

Outro aspecto que revela as mudanças no tribunal está relacionado à rejeição de contas de prefeituras. Levantamento do GLOBO mostra que o número de cidades com parecer prévio contrário à aprovação de suas finanças disparou desde a prisão dos conselheiros. Na rodada de julgamento de 2016, ainda em curso, já foram reprovadas as prestações de 51 dos 69 municípios avaliados. Em 2015, apenas oito dos 91 municípios foram reprovados; em 2014, três; e apenas um em 2013. Em 2012, também ano de encerramento de mandatos, foram reprovadas 26 prestações. Embora a quantidade de pareceres contrários não tenha precedentes na história recente do TCE-RJ, a versão do tribunal é que fatores externos também contribuíram para o aumento das rejeições de contas.

Sergio Sacramento, secretário-geral de Controle Externo do TCE-RJ, diz que a crise econômica e as regras especiais para os últimos anos de mandato nos governos provocaram as reprovações, baseadas principalmente no desrespeito aos limites de gastos com pessoal — provocado pela queda de receita dos municípios — e a criação de novas despesas, como aumentos de servidores, a menos de oito meses do fim dos mandatos.

Procurador de Niterói e vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM), Raphael Diógenes Serafim Vieira diz que os critérios para o julgamento das contas ficaram mais rigorosos:

— O que mudou foi maior seriedade na aplicação da legislação, e a exigência para que os municípios observem as regras. Muitos municípios faziam vista grossa e isso acabava passando.

Em conversas reservadas, fontes do tribunal ouvidas pelo GLOBO dizem que, antes das prisões, a influência política no órgão podava, na prática, o trabalho de fiscalização.

— O tribunal não tem vínculos tão grandes com a classe política como na gestão anterior. Os conselheiros são oriundos da área técnica, não do compadrio político. Antes das prisões, quase não existiam pessoas motivadas para trabalhar. Era um ambiente muito opressivo para quem queria fazer uma ação técnica — afirma um servidor. — Vários dos nossos trabalhos foram usados não para o interesse público, mas para agradar a interesses desses conselheiros. Ou para criar dificuldades e vender facilidades depois, ou para perseguir um determinado grupo político.

Entre os sistemas de big data implantados está o Indicador de Risco de Irregularidades (IRIS). O sistema avalia automaticamente a possibilidade de problemas em contratos. Além de informações do tribunal, o programa considera no cálculo denúncias e investigações feitas por outros órgãos, como o Ministério Público (MP). Assim, empresas flagradas em escândalos recebem mais atenção.

— Isso entra no risco. Vamos formando o banco de dados com todas as informações. Cada uma delas tem peso diferente — explica Sacramento.

Essa aparente mudança nos resultados do tribunal provocou reações na política. A principal partiu do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB). Ao anunciar, em dezembro, que se aposentaria da vida pública ao fim do mandato, criticou o rigor do TCERJ. Para Pezão, estava cada vez mais difícil governar para “quem gosta de trabalhar” porque “tem muito mais gente para falar não, fiscalizar”. Ele disse que “pessoas mostram como trunfo reprovar contas de 21 gestores em 23”, citando os julgamentos parciais de contas das prefeituras à época.

A mudança de postura no TCE, no entanto, pode ser circunstancial. Os conselheiros antigos foram afastados pela Justiça por tempo indeterminado, mas continuam ocupando oficialmente os cargos.