O Estado de São Paulo, n. 45414, 18/02/2018. Espaço aberto, p. A6

 

Vencimentos têm base legal, dizem conselheiros

18/02/2018

 

 

Integrantes que ganharam acima do teto defendem remuneração extra e afirmam que são isentos para analisar casos de supersalários no CNJ

Os integrantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que receberam, em parte dos meses do ano passado, valores que superam o teto constitucional de R$ 33,7 mil afirmaram que os vencimentos têm amparo legal. Parte deles não especificou, porém, que benefícios de fato recebe.

Questionado se teria isenção para analisar casos dos supersalários, o conselheiro Aloysio Veiga disse que tem “atuação independente”. Afirmou que “a remuneração percebida em 2017 encontra-se dentro das normas”. O procurador de Justiça de São Paulo Arnaldo Hossepian disse que sua remuneração “encontra amparo na legislação”. “Os valores são submetidos aos órgãos de controle do Ministério Público e, atualmente, do Poder Judiciário.”

O desembargador Valtércio de Oliveira, do TRT-5, afirmou que tem “total isenção” para atuar no CNJ, porque os recebimentos “estão dentro da lei”. A assessoria do ministro João Otávio de Noronha disse que ele também “só recebeu pagamentos que têm amparo legal”.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina informou que o juiz Márcio Schiefler Fontes “jamais recebeu acima do teto”. “A atuação do juiz no CNJ deve ser aferida por suas decisões, que são públicas e recentes.”

 

Constituição. “As parcelas de qualquer espécie estão previstas na Constituição, em lei ou em norma do CNJ”, disse o conselheiro Fernando Mattos, juiz da 2.ª Região. O Tribunal de Justiça do Ceará afirmou que a remuneração da desembargadora Maria Iracema do Vale respeita o teto. “Além do subsídio mensal, são, eventualmente, acrescidas verbas de caráter indenizatório, autorizadas por lei.”

“Todas as verbas recebidas, sempre de acordo com a lei, observam o teto constitucional e são auditadas por órgãos de controle interno e externo (TCU e CNJ)”, disse a desembargadora Daldice Almeida, do TRF-3.

O Ministério Público do Paraná informou que a procuradora aposentada Maria Tereza Uille Gomes recebeu valores adicionais no ano passado porque, por diversos anos, não tirou férias. “As verbas indenizatórias, que não se submetem ao teto constitucional, são relativas a indenização de férias e licenças especiais não usufruídas.”

O conselheiro Valdetário Monteiro disse que recebeu a mais em outubro porque acumulou parte da remuneração por dias trabalhados no mês anterior. “O que há é uma defasagem salarial dos magistrados. Tentou-se corrigir com a concessão do auxílio.” O procurador da República Rogério Nascimento disse que sua atuação é “técnico-jurídica”. Afirmou que uma das razões para o valor pago a ele ter ultrapassado o teto em 2017 foi o recebimento de gratificação natalina e férias.

A assessoria do CNJ informou que os valores pagos ao secretário-geral, Júlio Andrade, “respeitam as normas referentes ao teto constitucional”. Disse ainda que o conselheiro Henrique Ávila recebeu além do teto porque houve pagamento do 13.º salário, de forma parcelada.

A ministra Cármen Lúcia, procurada por meio do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, não respondeu.

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Quando o teto vira piso e o descontrole vira regra

Cristiano Maronna e Luciano Zaffalon

18/02/2018

 

 

Não se pode ignorar que o Poder Judiciário custa muito caro e é pouco transparente. A pesquisa “O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória” permite comparar o quanto se gasta com a Justiça em diferentes países, considerando os respectivos PIBs: a Espanha despende 0,12% de seu PIB com o Judiciário, a Argentina, 0,13%, e os EUA e a Inglaterra, 0,14%. O Brasil consome 1,30%.

Sem qualquer controle social efetivamente externo, é o próprio Judiciário que dá a palavra final a respeito de questões interna corporis, incluindo a política remuneratória: o CNJ, órgão criado como instância fiscalizatória da magistratura, é formado majoritariamente por... magistrados. Com isso, mantêm-se distorções, com juízes do próprio Conselho recebendo polpudos complementos salariais, acima do teto constitucional e, ainda, não tributados.

Há outro fator: o custeio dos penduricalhos nas carreiras jurídicas pode funcionar como moeda de troca na relação com os demais Poderes, ao se negociar, por exemplo, suplementações orçamentárias para o Judiciário a cada ano. Esses diálogos permitem a magistrados ganhos que os colocam entre os 0,1% mais ricos do Brasil.

O CNJ sabe disso e mais. Em 2006, pesquisa encomendada pelo órgão constatou que 2.978 magistrados e servidores do Judiciário do País recebiam acima do teto. A pesquisa encontrou irregularidades em 19 Tribunais Estaduais e um Federal.

A pauta é atual e incomoda parte dos magistrados, como os que realizaram neste mês manifestação no STF em defesa de interesses corporativos, como o auxílio moradia.

Um debate de fundo deve ser feito, ainda mais com os gastos sociais congelados por 20 anos. Pagar benesses a carreiras jurídicas não encontra lastro no interesse público, tanto que apenas beneficiários desses valores são capazes de defendê-las. O desafio democrático se intensifica por se tratar de sujeitos que consolidam jurisprudências e interpretam normas, inclusive as de moralidade administrativa.

Delfim Neto, em artigo publicado em 2017, resumiu esse paradoxo: aqueles a quem cabe julgar nossos conflitos têm aplicado uma “hermenêutica esperta”, muito bem servida por “exegeses criativas que transformaram o limite constitucional em letra morta”.

É momento de pensar sobre o real equilíbrio entre os Poderes que compõem o Estado brasileiro, que está a serviço da sociedade, e não o contrário. Que o fiel da balança seja o interesse público e se reflita no direcionamento dos recursos.

 

✽ CRISTIANO MARONNA É ADVOGADO, MESTRE E DOUTOR EM DIREITO PENAL PELA USP, É PRESIDENTE DO INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

 

✽ LUCIANA ZAFFALON É ADVOGADA, MESTRE E DOUTORA EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PELA FGV-SP E COORDENADORA-GERAL DO INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS