Título: Apertem o cinto: o dinheiro sumiu
Autor: Angelo , Ana D
Fonte: Correio Braziliense, 01/04/2012, Economia, p. 10

A conversa mansa e a insistência do funcionário de uma revenda de usados, o prazo longo e a possibilidade de financiar quase todo o carro por um banco em que nem precisava ter conta-corrente foram tentadores demais para Márcio Alexandre de Santana, 29 anos, que ganha R$ 831 brutos como auxiliar de serviços gerais de um condomínio residencial em Brasília. Ele conseguiu obter facilmente, em outubro de 2011, um financiamento de R$ 15 mil do Banco Santander, intermediado pela revenda, para comprar um Celta 1.0, ano 2004,por R$ 16,5 mil, em 60 meses. A entrada de R$ 1,5 mil foi paga em quatro vezes com a ajuda da companheira. Com salário líquido mensal de R$ 720 e prestação de R$ 552,65, mal entrou no quinto mês, Márcio já está sentindo a corda apertar cada vez mais seu pescoço.

O auxiliar está tentando passar adiante o financiamento, antes de engrossar a lista dos inadimplentes, que engatou uma quarta marcha no início de 2011 e está subindo a ladeira em ritmo acelerado. Resultado da farra do crédito fácil e do incentivo ao consumo patrocinados pelo próprio governo para vencer a crise de 2008, o atraso acima de 90 dias no pagamento de prestações de financiamento dos veículos mais que dobrou de dezembro de 2010 até fevereiro deste ano — saltou de 2,5% para 5,5% no período, conforme levantamento do Banco Central (BC).

Apesar de ter havido alta da inadimplência em todas as modalidades de crédito nos últimos 14 meses, nenhuma teve desempenho tão negativo como a da aquisição de veículos. No crédito pessoal, o calote está em 5,6% do saldo emprestado, mesmo patamar do fim de 2011 e um terço a mais que em dezembro de 2010. Nas linhas de financiamento destinadas às compras de bens como computadores e móveis, a inadimplência atual de 13,6% está até abaixo dos índices registrados no segundo semestre de 2011.

O quadro ruim atualmente tende a ficar ainda pior. A legião dos que não vão dar conta de pagar as prestações do carro deve aumentar, pois 5,03% do total financiado já estão com prestações vencidas entre 31 e 90 dias, segundo o BC. "O atraso a partir de 15 dias tem subido rapidamente, o que indica a inadimplência futura (quando a mensalidade está atrasada a mais de 90 dias)", alerta o economista e consultor de varejo automotivo Ayrton Fontes. Para ele, esse é o sintoma de quem não tem margem na renda para atender suas necessidades imediatas de consumo e de pagamento de suas obrigações. "Muitos já estão endividadas com cartão de crédito e carnês", observa. Daqui a um ano, a inadimplência no crédito de veículos estará em 8% e 10%, prevê Fontes.

Renda comprometida

Outra pesquisa do BC comprova que é cada vez maior o endividamento das famílias brasileiras. Atualmente, elas estão comprometendo, em média, 42,66% da renda com prestações, indicador que tem aumentado consecutivamente nos últimos oito anos. Em 2004, por exemplo, as dívidas representavam 24,94% do dinheiro que entrava na casa.

Os que ganham menos são os mais apertados. Levantamento da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL) mostra que 58,6% das famílias com renda até R$ 6,2 mil estão endividadas, das quais, 23,4% têm débitos já vencidos e 7,3% sem condições de pagá-los. Em relação aos lares com salários acima dessa faixa, a fatia dos que devem é pouco menor (50,2%). A quantidade dos inadimplentes é de 10,3% e apenas 1,7% deles declararam que não terão condições de honrar os compromissos.

O calote atual, afirma o consultor Ayrton Fontes, é reflexo das vendas entre 2009 e 2011, principalmente para a emergente classe C, que adquiriu carros em 60 vezes praticamente sem entrada. "Quem tinha ficha limpa conseguia crédito na hora", lembra o economista.

O então motorista Heverton Farias, de 30 anos, foi um dos que conseguiram financiar facilmente um Siena novinho de R$ 26 mil em dezembro de 2010, em 60 meses com prestação de R$ 853. No mês seguinte, ficou desempregado. Ele não teve outra saída a não ser devolver o carro seis meses depois. Pagou apenas três parcelas e depois não aguentou mais. Devendo três mensalidades, fez um acordo amigável com o banco no meio do ano, que aceitou o carro de volta. Assim, ele se livrou do saldo existente de R$ 48,6 mil. "Não aguentei pagar. O carro sairia pelo dobro", afirma ele, que hoje trabalha como vendedor.

Corte de despesa Os bancos e as instituições financeiras ligadas às montadoras não divulgam dados sobre o crescimento dos financiamentos de carros por faixa de renda, mas dados da Serasa Experian dão uma dimensão do que aconteceu no período. A consulta por crédito que mais cresceu nos últimos dois anos foi para a parcela de renda de até R$ 500, com crescimento de 46% em 2010 e de 20% em 2011. Para salários entre R$ 500 e R$ 1.000, a procura cresceu 15,7% e 8,7% no período.

O analista de instituições financeiras da agência de classificação de risco Austin Rating, Luiz Miguel de Santacreu, observa que o crédito é muito sedutor, mas, quando o consumidor se dá conta, já está atolado. "Não adianta o governo vir com indutor de crédito, sem a devida educação e disciplina financeira. Alguns aprendem, infelizmente, na carne", diz.

O servidor público Leonardo Farias, 27 anos, está penando para pagar o financiamento de 100% de um Renault Logan de R$ 22 mil que conseguiu facilmente há oito meses, para pagar em 60 meses de R$ 662. Com renda líquida de menos de R$ 2 mil, está tendo que cortar gastos para honrar o compromisso e adiantar algumas parcelas. Ele fez as contas e descobriu que só em juros vai desembolsar quase R$ 18 mil. "Almoçava fora até quatro vezes por semana e passei a levar almoço para o trabalho todos os dias. Também reduzi as saídas drasticamente, quase a zero mesmo. Evito até ir ao shopping, só compro o que é estritamente necessário", revela.