Correio braziliense, n. 20127, 30/06/2018. Mundo, p. 10

 

Tragédia na Líbia e acorda na Europa

Rodrigo Craveiro

30/06/2018

 

 

Bote inflável com dezenas de ocupantes afunda após explosão, no Mar Mediterrâneo. Três bebês morrem e mais de 100 pessoas estão desaparecidas. Na Bélgica, líderes dos 28 países-membros da União Europeia acertam compromissos para reagir à crise

A 2.705km de Bruxelas, onde líderes dos 28 países da União Europeia (UE) negociavam um pacto para pôr fim às divisões sobre a crise migratória, a cidade líbia de Al-Hmidya, a 25km da capital Trípoli, recebia os corpos de três bebês e buscava mais de 100 migrantes sumidos após o naufrágio de um bote inflável. A embarcação zarpou de madrugada de Garabulli, 50km a leste de Trípoli. Houve uma explosão a bordo, o motor começou a pegar fogo e, para se proteger, as pessoas se concentraram de um único lado do bote, que tombou. Entre os desaparecidos, estão dois bebês e três crianças de 4 a 12 anos, além de 10 a 15 mulheres. A nova tragédia instilou pressão sobre os chefes de Estado e de governo do bloco, enquanto agências humanitárias intensificavam as críticas ao acordo, considerado “vago”. “Os Estados-membros da UE estão abdicando de suas responsabilidades para salvar vidas e, de forma deliberada, condenam as pessoas vulneráveis a serem aprisionadas na Líbia ou a morrerem no mar”, desabafou Karline Kleijer, chefe de emergências da organização não governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF).

Ao fim da cúpula da UE na Bélgica, os líderes europeus firmaram compromissos (veja quadro), incluindo a criação voluntária de “centros de controle” para migrantes nos países pelos quais eles entram no continente e o estudo para a ativação de “plataformas regionais de desembarque”. Nesses centros, os estrangeiros serão separados entre aqueles aptos à concessão de asilo e os ilegais, que deverão retornar às nações de origem. Apesar do avanço, o presidente francês, Emmanuel Macron, descartou implementar a medida. “A França não é um país de primeira chegada, considerando-se a situação, e não se abrirá para centros desse tipo”, avisou. Na quinta-feira, a Itália chegou a vetar acordos na área de comércio e ameaçou sabotar qualquer solução sobre a imigração que não atendesse aos seus anseios.

“Os 28 líderes da UE concordaram com as conclusões do Conselho Europeu, incluindo sobre imigração. (…) É muito cedo para falar de um êxito. Conseguimos chegar a um acordo no Conselho Europeu, mas esta é, de fato, a parte mais fácil da tarefa, em comparação com o que nos espera no terreno, quando começarmos a implementá-la”, declarou Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu. Uma das principais vozes dissonantes da cúpula, o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, comemorou que seu país não está mais sozinho no bloco. “O acordo reconhece que a gestão dos fluxos migratórios deve ser organizada com um enfoque integrado, no plano interno e externo, e com um controle de fronteiras.”

O consenso inicial representou alívio para a chanceler alemã, Angela Merkel, em meio a uma rebelião no governo comandada pelo ministro do Interior, Horst Seehofer. O conservador bávaro ameaçou rejeitar todos os migrantes que chegarem à Alemanha, caso ela não conseguisse avanços na cúpula. Merkel precisou ceder e aceitar os “centros de controle”, os quais classificava como “prisões”. “No geral, depois de uma discussão intensiva sobre a questão mais desafiadora para a UE, a migração, é um bom sinal que tenhamos concordado com um texto comum”, avaliou. “Ainda temos muito trabalho a fazer para superar as divisões.”

Demetrious G. Papademetriou, cofundador e ex-presidente do Migration Policy Institute (em Washington), afirmou ao Correio que a Áustria é a maior fonte de resistência ao pacto firmado ontem na Bélgica. “Os austríacos, que manterão a Presidência da União Europeia pelos próximos seis meses, vão continuar a pressionar para que todos os pedidos de asilo sejam examinados em centros localizados fora da Europa — o que interromperia muitas das rotas para o continente”, comentou. “Isso será extremamente difícil de implementar, tanto legalmente (em termos de lei sobre refúgio internacional e prática humanitária) quanto financeiramente (a cooperação de países que abrigarão tais centros será muito onerosa) e politicamente.”

Naufrágio
Christine Petré, porta-voz da Organização Internacional para Migrações (OIM) na Líbia, usou o Twitter para exigir que mais seja feito a fim de reduzir os movimentos migratórios inseguros no Mediterrâneo e publicou trecho de poema do escritor somali-britânico Warsan Shire: “Você tem de compreender que ninguém coloca seus filhos em um bote, a menos que a água seja mais segura do que a terra”.

Por e-mail, Petré contou ao Correio que, além dos corpos dos três bebês, 16 sobreviventes foram resgatados. “Os ocupantes do bote falaram em 100 migrantes no total, mas não sabemos com exatidão quantos faltam. Os botes estão superlotados e são incapazes de resistir a muitas horas no mar”, disse. De acordo com ela, a OIM fornece água, comida, cobertores e roupas para os sobreviventes, além de tratamento médico e psicológico aos migrantes devolvidos pela Guarda Costeira líbia.

“Por que não deixa a União Europeia?”

A pergunta foi feita em abril, durante encontro na Casa Branca, pelo presidente americano, Donald Trump, ao colega francês, Emmanuel Macron, segundo o jornal The Washington Post. O conteúdo da conversa foi confirmado à agência France-Presse por uma fonte diplomática. Nos últimos meses, Trump multiplicou os ataques à União Europeia (UE), denunciando o que considera injustas as práticas comerciais, em especial no setor automobilístico. “A União Europeia foi criada, é claro, para se aproveitar dos Estados Unidos”, disse, na noite de quarta-feira, em Dakota do Norte. Eleito com o slogan “America First” (“A América em primeiro lugar”), Trump costuma atacar as organizações multilaterais e critica regulamente a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Eu acho...

“A Europa e, particularmente a chanceler Angela Merkel, podem ter ganhado algum tempo com o acordo. Mas o pacto nada fará para conter a migração indesejada. Além disso, a situação no Mar Mediterrâneo não foi abordada.”

Demetrios G. Papademetriou, cofundador e ex-presidente do Migration Policy Institute (MPI)

As decisões do bloco

Plataformas de desembarque
Os 28 países da União Europeia (UE) pedem às instituições comunitárias que “explorem rapidamente o conceito de plataformas regionais de desembarque” fora da Europa, provavelmente no norte da África, em cooperação com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e com a Organização Internacional para Migrações (OIM). Os imigrantes resgatados em águas internacionais serão transferidos para essas plataformas financiadas pela UE, onde se fará uma seleção entre os migrantes que podem aspirar a obter asilo na Europa e os migrantes econômicos, tudo isso “respeitando plenamente o direito internacional”. O entrave está no fato de que, até agora, nenhum país fora da UE se ofereceu para acolher essas plataformas. Marrocos e Albânia avisaram que vão se opor.

Centros “controlados”
Outra proposta para fazer frente ao desafio migratório é a criação de “centros controlados” na UE, para onde serão levados os imigrantes resgatados em águas europeias. Nesses locais, será feita seleção entre os imigrantes, a fim de avaliar quem tem direito a asilo e quem não tem. Esses últimos serão devolvidos aos países de origem. Os estrangeitos que contarem com proteção da UE serão redistribuídos entre países “voluntários” a acolhê-los. O plano é polêmico: muitas pessoas comparam tais centros a prisões.

“Movimentos secundários”
Os europeus também se comprometem a lutar contra os movimentos migratórios entre os países da UE, um fenômeno conhecido como “movimentos secundários”. “Os Estados-membros devem tomar todas as medidas legislativas e administrativas internas necessárias para controlar esses movimentos e cooperar estreitamente entre eles com este fim”, afirmam nas conclusões. O fenômeno está no centro das tensões entre a chanceler alemã, Angela Merkel, e o partido aliado União Social Cristã, que ameaça rejeitar na fronteira sul da Alemanha os migrantes registrados em outros países.

Fronteiras externas
Os 28 países-membros também pretendem repassar mais recursos e prerrogativas para a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costa (Frontex). No entanto, o texto do acordo não oferece detalhes. Também se pede mais apoio à Guarda Costeira líbia e que “todos os barcos que patrulham no Mediterrâneo respeitem as leis e não ofereçam obstáculo às operações da Guarda Costeira líbia”. As nações também concordaram com o desbloqueio de um segundo 
pacote de 3 bilhões de euros do fundo destino aos refugiados na Turquia e com a injeção de fundos da UE para a África, com o objetivo de atacar as causas das migrações.

Regulamento de Dublin
Os líderes europeus defendem uma reforma do Regulamento de Dublin, “com base no equilíbrio entre a responsabilidade e a solidariedade”. No entanto, não informam data para a mudança da lei europeia segundo a qual o país em que um migrante entrar pela primeira vez é o responsável por administrar o pedido de proteção. Nações como Hungria, Polônia e Áustria opõem-se firmemente. A Itália pede, por sua vez, um sistema de cotas e que se abandone essa legislação.