Correio braziliense, n. 20123, 26/06/2018. Mundo, p. 12

 

Longe do tribunal

Rodrigo Craveiro

26/06/2018

 

 

ESTADOS UNIDOS » Governo determina que migrantes flagrados ao tentarem entrar ilegalmente no país, com os filhos, não sejam processados. Trump vê sistema “disfuncional”. Vice chega hoje a Brasília. Três irmãos brasileiros recebem autorização para sair de abrigo

Enquanto o presidente norte-americano, Donald Trump, endurecia a retórica anti-imigração e avisava que o sistema migratória será sempre “disfuncional”, as autoridades do governo recuavam em algumas das políticas sobre o tema, apesar de garantirem a manutenção da chamada “tolerância zero”. “Contratar muitos milhares de juízes, e passar por um longo e complicado processo legal, não é um caminho a percorrer — sempre será disfuncional”, escreveu o líder republicano em seu perfil no Twitter. “As pessoas devem, simplesmente, ser abordadas na fronteira e avisadas para não virem aos EUA ilegalmente. Crianças devem ser levadas de volta aos seus países. Se isso for feito, a imigração ilegal será interrompida. (…) Esta é a única resposta real — e devemos continuar a construir o muro!”, acrescentou. Na véspera, Trump tinha defendido que o país dispense o processo judicial e deporte imediatamente os imigrantes ilegais.

Hoje, o vice-presidente, Mike Pence, desembarca em Brasília para uma viagem de dois dias, durante a qual deverá discutir com autoridades a situação das crianças migrantes brasileiras retiradas dos pais, além da crise na Venezuela e cooperação bilateral (leia nesta página).

Menos de 24 horas depois, a U.S. Customs and Border Protection (“Proteção das Fronteiras e Alfândegas dos Estados Unidos”, pela tradução livre) interrompeu, de forma temporária, o encaminhamento de pais para que sejam processados pela Corte federal depois de serem flagrados atravessando a fronteira com suas criança. Kevin K. McAleenan, chefe da agência, ordenou aos funcionários da Imigração para que não encaminhem as famílias a processo legal no Departamento de Justiça. A medida valerá até que as autoridades concordem com uma política que permita aos pais serem incriminados sem a necessidade de separá-los dos filhos. O anúncio transparece a confusão no governo Trump em relação à questão migratória. Segundo o jornal The New York Times, a nova determinação deverá retomar a política “catch and release” (“capturar e libertar”), em vigor durante a gestão de Barack Obama, contrariando a ideologia republicana.

“Nós não estamos mudando a política (da tolerância zero). Estamos, simplesmente, sem recursos. O Congresso terá de fazer o que eles foram eleitos para fazer: reforçar a fronteira, deter o crime que entra em nosso país”, declarou a porta-voz da Casa Branca, Sarah Huckabee Sanders. “O país tem deixado extremamentre claro que não quer fronteiras abertas. E os democratas precisam trabalhar com os republicanos e encontrar soluções, acrescentou, ao acusar os opositores de se engajarem em “jogos políticos”.

O hondurenho Denis Javier Varela Hernandez (leia a entrevista), pai de Yanela Denis — a menina de 13 meses detida com a mãe no Texas e transformada em símbolo do drama migratório — elogiou a decisão da U.S. Customs and Border Protection. “Vejo isso como algo muito bom. Creio que isso foi provocado pela foto de minha filha. Tudo isso se deve à imagem dela”, disse ao Correio.

Das 51 crianças brasileiras que estavam em instituições nos Estados Unidos, separadas dos pais, três receberam autorização para permanecer em território norte-americano com familiares. Antar Davidson, ex-funcionário do abrigo Estrella del Norte, em Tucson (Arizona), onde as crianças eram mantidas, contou ao Correio que se tratam de três irmãos: dois meninos, de 16 e de 8 anos; e uma menina, de 10. “Se eles estão juntos e felizes, cumpri com minha missão. Sei que a experiência foi muito difícil para eles. Eles vieram de Minas Gerais. Tudo o que fiz foi falar com a imprensa. Faço o meu dever de ser cidadão ativo. Tenho dupla cidadania (brasileiro e americano) e falo em uma democracia contra políticas que não refletem a vontade do povo”, comentou, por telefone. De acordo com ele, o trio chegou ao abrigo em 29 de maio. “O sistema não estava preparado para ajudá-los. São irmãos muito apegados uns aos outros e acabaram separados entre si. Eles precisarão de muita ajuda para superar isso.”

Restaurante

Durante a entrevista coletiva, ontem, Sarah Sanders citou o episódio em que foi convidada a se retirar de um restaurante em Lexington, na Virgínia, na noite de sábado. “Somos autorizados a discordar, mas devemos ser capazes de fazê-lo livremente e sem o temor de danos. Isso vale para todas as pessoas, independentemente da política. Alguns escolheram empurrar o ódio e o vandalismo contra o restaurante do qual fui convidada a sair. Um ator de Hollywood encorajou publicamente as pessoas a sequestrarem meus filhos”, desabafou. Ao sair em defesa da assessora, Trump deixou a cordialidade de lado. “O restaurante Red Hen deveria se concentrar em limpar seus toldos sujos, suas portas e janelas (que precisam de uma pintura), do que se recusar a servir uma pessoa legal como Sarah Huckabee Sanders. Eu sempre tive um regra: se um restaurante está sujo do lado de fora, está sujo dentro”, escreveu no Twitter.

538

Total de crianças que foram reunidas com pais depois de serem separadas ao atravessarem a fronteira do México com os Estados Unidos

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"Minha menina aliviou a dor dessas crianças"

Denis Javier Varela Hernandez

26/06/2018

 

 

Da noite para o dia, o hondurenho Denis Javier Varela Hernandez, 32 anos, viu a filha Yanela Denis Varela Sánchez, de 13 meses, se transformar em símbolo do drama dos migrantes detidos ao entrar nos Estados Unidos. Primeiro, a foto de autoria de John Moore, repórter fotográfico da Getty Images e ganhador do Prêmio Pulitzer, viralizou na internet. Depois, a imagem da menina foi usada na capa da revista Time, na qual o presidente Donald Trump olha, de modo impassivo, para Yanela, aos prantos. Em entrevista ao Correio, Denis, morador de Puerto Cortes — a 304km ao norte da capital Tegucigalpa — falou sobre a situação da mulher, Sandra Sánchez, e de Yanela, presas no Texas. Ele acredita que a exposição da filha, que completará dois anos no domingo, ajudou a colocar pressão para que Trump suspendesse a separação de famílias na fronteira. Denis afirmou que analisará quais ações pretende tomar em relação à Time após a publicação da revista, em julho. Apesar de descartar um pedido de asilo nos EUA, o hondureinho admitiu que tentará um visto para que ele e outros três filhos possam visitar Sandra e Yanela.

Quando sua mulher e sua filha foram  detidas pela Imigração dos Estados Unidos?

Minha esposa, Sandra Sánchez, tomou a decisão de imigrar para os Estados Unidos, acompanhada de nossa bebê, de um dia para o outro. Creio que foi uma travessia repleta de riscos, tanto para ela quanto para a menina. Foi uma decisão bastante pessoal, creio que buscando um melhor futuro para ela e para nossa família. Ela saiu de Puerto Cortes (Honduras) em 5 de junho. Eu tive notícias delas cerca de 10 dias depois. Soube, por meio de uma emissora de televisão norte-americana, que elas tinham sido detidas. A reportagem divulgou fotos de ambas. As imagens foram a notícia daquele dia...

A chancelaria de Honduras anunciou que Yanela jamais foi separada da mãe...

Sim, está correto. A chancelaria de meu país entrou em contato e me disse que Sandra contou a um familiar que elas nunca tinham sido separadas. É uma versão que eu não pude confirmar, pois não consigo me comunicar com Sandra há três semanas. Não conheço o paradeiro delas. O que sei é que elas estão em um centro de detenção em McAllen, no Texas.

Elas enfrentarão um processo de deportação?

Sandra entrou com uma solicitação de asilo político. Estamos aguardando os trâmites para ver que  solução as autoridades migratórias norte-americanas darão ao caso.

Na condição de pai, como o senhor vê o fato de Yanela ter se tornado um símbolo dessa tragédia migratória?

(suspiros) Ai, homem... Você não sabe, não tem ideia. Você teria de estar aqui para ver minha  reação. E teria de estar em meus sapatos para sentir o que senti. Ver minha menina nessa situação é bem difícil, bem duro. Ninguém poderia conter as lágrimas que derramei por minha filha (choro). Sei que milhares de pessoas choraram com a imagem de minha menina. Na verdade, me dá tristeza ante a situação que elas enfrentam. Creio que alguma coisa positiva terá de ser obtida disso tudo. Deus sabe o que faz. Algum dia eu entenderei isso. Pense em todas as crianças que enfrentam o trauma e a angústia por estarem separadas de suas mães. Acredito que minha menina alivou a dor dessas crianças. Muitas delas já estão com seus pais e mães. Minha menina foi participante de tudo isso. Damos graças a Deus, pois para algo isso serviu e continuará servindo. Isso ficou para a história. Foi uma notícia de âmbito mundial. O fato de vocês, de um jornal do Brasil, estarem interessados no tema mostra que isso transcendeu barreiras. Tenho que agradecer, pois a imagem de minha menina serviu para muito.

Como analisa a política migratória dos Estados Unidos?

A imagem de minha filha foi tomada como símbolo da situação migratória nos EUA. A imagem dela mudou isso, colocou ordem no status migratório das crianças. Ela atraiu a atenção das autoridades norte-americanas para o tema. Graças a ela, Trump teve de firmar um acordo para deixar de separar as crianças de suas mães. Graças a Deus, me sinto muito orgulhoso, mas também muito triste. Creio que temos de esperar o desenlace disso tudo e confiar que tudo sairá muito bem. Os Estados Unidos têm as suas leis, cumprem com as suas leis. A situação das crianças não é justa. Não creio ser justo usar as crianças como meio de pressão. Cada fronteira tem as suas leis. Temos de entender isso. (RC)