Título: Dívida uruguaia
Autor: Vicentin, Carolina
Fonte: Correio Braziliense, 16/04/2012, Mundo, p. 12

Como ocorre em outros países da região, o governo de José Mujica é criticado por não punir crimes cometidos durante a ditadura militar

A ascensão de governos de esquerda na América Latina representou um alento para muitas vítimas dos regimes militares. Passados os primeiros anos dessa virada política, no entanto, familiares de desaparecidos em alguns países denunciam que as autoridades fazem pouco para trazer à tona a verdade sobre os crimes do período de repressão. No Uruguai, onde o regime de exceção durou entre 1973 e 1985, parentes acusam o governo de José Mujica de estar sendo conivente com a impunidade de torturadores. Uma juíza chegou dizer que o presidente, de esquerda, não estava agindo como deveria em um dos casos mais polêmicos dos últimos meses.

A juíza Mariana Mota se referia à investigação da morte de Aldo Perrini, um sorveteiro preso por soldados em 26 de fevereiro de 1974 e declarado morto cinco dias depois. "Não há uma promoção dos direitos humanos para que essa situação, que é nacional e que nos marcou muito, seja esclarecida", disse ela ao diário argentino Página/12, no mês passado. "Mujica e o ministro da Defesa foram reféns da ditadura. Talvez por isso não possam ver com objetividade um processo ditatorial que os teve como vítimas", afirmou. A declaração gerou um processo na Suprema Corte de Justiça do país, que cobrou explicações da juíza, e uma enxurrada de protestos.

Perrini tinha 34 anos quando foi detido. Ele trabalhava em uma sorveteria da cidade de Carmelo, no sul do Uruguai. Simpatizante da Frente Ampla — curiosamente, o partido de Mujica —, ele foi levado pelos militares em uma das maiores ações repressivas do regime. Cinco dias depois da prisão, a família foi informada de que ele havia morrido de embolia pulmonar. Três militares assinaram o documento que relata a morte de Perrini. Um deles, Pedro Barneix, fez carreira e chegou a ser chefe do Exército no governo de Tabaré Vázquez, também da Frente Ampla e antecessor do atual presidente.

Agora general, Barneix tornou-se o inimigo número um de Piero Perrini, filho do sorveteiro. "Há coisas que eu não consigo entender. Quando o governo de esquerda foi eleito, eu pensei que eles iriam colaborar mais para elucidar o que houve com meu pai. Mas eles deram para Barneix a tarefa de conseguir informações sobre os desaparecidos, logo ele, que havia sido um torturador", diz Piero ao Correio. Em 2010, ele entrou com uma denúncia na Justiça, pedindo que o militar fosse punido. No próximo dia 25, a juíza Mariana Mota deve ouvir o general e outros quatro envolvidos na morte do sorveteiro.

Barneix também é um dos alvos de Francisco*, um uruguaio que vive no Brasil há 32 anos e foi preso pela ditadura de seu país quando tinha 19. Então militante da Frente Ampla, o jovem foi torturado durante quase um mês, até ser obrigado a assinar uma confissão de que pertencia ao Movimento Tupamaros, uma guerrilha urbana da qual o presidente Mujica fez parte. "Com a chegada dos tupamaros ao poder, uma das vítimas foi ao Ministério da Defesa para pedir por justiça. Sabe o que eles disseram? Que não iriam punir avôs. Ora, os militares torturaram e mataram pessoas idosas", indigna-se. "Se eu quisesse vingança, eu pagava um matador. Mas não é isso. Quero que os generais respondam pelo que fizeram."

Avanços Especialistas reconhecem que o governo uruguaio tardou em implementar medidas para reparar o sofrimento das vítimas da ditadura, mas acreditam que houve avanços. Mujica assumiu, no mês passado, a responsabilidade do Estado pelos crimes do regime e já houve condenações no país. O presidente também não autorizou mais a aplicação da lei da caducidade, o equivalente à lei da anistia no Brasil. Mesmo assim, ainda há muito para ser feito. "Não conheço casos específicos, mas o ponto fundamental é que a justiça para as vítimas deveria ser defendida sempre. Não importa se o governo é de direita ou de esquerda, é uma obrigação fazer com que essas pessoas saibam a verdade", afirma Eduardo González, diretor do Programa Verdade e Memória no Centro Internacional pela Justiça de Transição (CIJT).

Na tentativa de reparar o passado, cada país tem usado sua fórmula — com revogação de leis de anistia, abertura de arquivos secretos da ditadura e julgamentos. "Na América Latina, a situação das vítimas está relacionada à vontade política dos governos de priorizar o tema e ao grau de solidariedade que essas vítimas encontram na sociedade", explica González. "Há uma visão errada de que, se os familiares não disserem nada, o tema desaparece. Mas isso nunca acontece. E é uma ofensa à civilização negar à família o conhecimento do que aconteceu", diz.

Viagem ao Brasil

O presidente uruguaio, José Mujica, se encontrará com a presidente Dilma Rousseff na próxima quinta-feira em Brasília, após um breve encontro entre os dois na VI Cúpula das Américas, na Colômbia, que terminou ontem. Além do fluxo comercial entre os dois países, a atual situação do Mercosul e seu futuro, após as barreiras comerciais adotadas pela Argentina, devem estar na pauta da reunião. O Brasil foi o destino de 20,6% das vendas uruguaias ao exterior no primeiro trimestre do ano, pelo valor de 412 milhões de dólares, 11,3% a mais que no mesmo período de 2011, segundo o instituto Uruguai XXI.