Correio braziliense, n. 20125, 28/06/2018. Mundo, p. 12

 

Cúpula tenta salvar uma Europa dividida

Rodrigo Craveiro

28/06/2018

 

 

IMIGRAÇÃO » Países-membros da União Europeia começam a debater reforma do sistema de asilo em meio a divergências sobre o tratamento aos ilegais. Especialista descarta que evento em Bruxelas sinalize possível solução para reparar as fraturas entre governos

Entre hoje e amanhã, 24 dos 28 países-membros da União Europeia (UE) terão a difícil, se não quase impossível, tarefa de reparar as fraturas causadas pela crise migratória. Com as ausências intencionais de Polônia, Hungria, Eslováquia e República Tcheca, que decidiram sabotar a minicúpula em Bruxelas, o bloco deverá debater a reforma da Convenção de Dublin para refugiados, uma proposta para montar centros de processamento de solicitantes de asilo no norte da África, o impacto do Brexit (divórcio entre Reino Unido e a UE), mudanças na zona do euro, finanças, segurança e defesa.

A ascensão do populismo na Itália, cujo governo do premiê Giuseppe Conte endureceu medidas contra os migrantes, e dissidências internas no governo da Alemanha colocam em xeque o bloco e o espaço de Schengen — o acordo de livre circulação europeu. A chanceler alemã, Angela Merkel, é acusada por aliados de fazer vistas grossas à onda de estrangeiros ilegais. O ministro do Interior, Horst Seehofer, chegou a anunciar um ultimato de duas semanas para que Merkel devolva os migrantes às nações por onde entraram na UE. Os líderes reunidos na capital belga também discutirão a instalação de campos para migrantes fora das fronteiras do bloco.

No último domingo, um primeiro encontro com 16 líderes não avançou em uma saída plausível sobre a acolhida de migrantes. O desafio principal será compactuar planos de reforma do sistema de asilo da UE, que sucumbiu à crise de 2015. “A cúpula destacará a extensão das divisões do bloco, em vez de encontrar meios de curá-las. Existe pouco apetite para encontrar um acordo que simplifique a aceitação ou o registro de migrantes, ou que sugira a partilha do fardo socioeconômico entre os países-membros”, afirmou ao Correio o britânico Rob Dover (leia a Palavra do Especialista), professor de inteligência e segurança nacional pela Universidade de Leicester (Reino Unido).

Fendas

Para o especialista, o fato de a Convenção de Dublin declarar que os migrantes sejam registrados no primeiro país europeu de entrada é considerado insustentável numa era em que os estados fronteiriços se mostram incapazes de fazer esse processamento. “As fendas da UE também se tornaram um pouco mais complexas, recentemente. Os países do norte da Europa veem as nações fronteiriças do sul como pouco esforçadas em deter a onda de migrantes, além de facilitadoras de uma passagem segura para o norte. Por outro lado, os países sulistas entendem que as nações do norte fogem da partilha dos  problemas e se indispõem a ajudar financeiramente o sul, que se sente abandonado”, explicou Dover. “Da mesma forma, quase todos os Estados-membros da UE têm um problema político associado à imigração, que se manifesta nos partidos inclinados a posições populistas. Tais realidades  eleitorais domésticas impõem sérias restrições aos líderes nacionais para que possam ser capazes de negociar, de modo flexível, aumentando ainda mais as perspectivas de desacordo.”

Dover não espera grandes avanços na nova cúpula, mas não descarta um acordo universal em direção a uma retórica mais contundente sobre o combate à imigração. Segundo ele, alguns Estados pressionarão por compreensão humanitária aos migrantes que se lançam na travessia do Mar Mediterrâneo (veja arte). O analista prevê o abandono da Convenção de Dublin, a qual obriga um migrante a ser registrado no local onde aportar. “Poderá haver mais dinheiro e uma partilha de capacidades, por meio da Frontex, a agência de fronteiras da UE. Não vejo nenhum acordo para dividir os migrantes entre países-membros, nem pactos sobre quotas, o que seria algo politicamente tóxico.”

Ainda de acordo com o estudioso de Leicester, a questão da “migração excessiva” tem sido associada à competição por recursos na Europa, incluindo a disputa por empregos e pelo acesso aos serviços públicos. “A austeridade econômica europeia, em vigor desde 2008, está sendo colocada à porte dos migrantes. Basta uma narrativa convincente de um conjunto de políticos convincentes para mudar  o contrato social, que está no cerne do projeto europeu”, alertou.

No centro da polêmica

As regras europeias de refúgio, conhecidas como Regulamento ou  Convenção de Dublin, estabelecem que o primeiro país em que o migrante chega na UE é o encarregado por administrar seu pedido de proteção internacional. O princípio foi temporariamente revogado por dois anos, até setembro de 2017. Os países da UE se comprometiam, mediante um sistema de cotas, a acolher o mais de 1 milhão de solicitantes de refúgio que chegavam em grandes quantidades às costas da Itália e da Grécia.

Palavra de especialista

Rob Dover, professor de inteligência e segurança nacional pela Universidade de Leicester (Reino Unido).

“A ausência de Polônia, Hungria e República Tcheca da minicúpula da União Europeia, em Bruxelas, é claramente inútil para encontrar respostas coesas aos desafios representados pela migração em países do bloco. A Polônia e a Hungria — em particular — são países fronteiriços, e têm governos cada vez mais inclinados ao populismo ou ao autoritarismo.

A decisão de se distanciar da cúpula é inspirada por uma forma de populismo ‘Trumpiano’, a de jogar para uma base de apoio essencialmente antieuropeia, enquanto amplia as pretensões de se tornar um país forte e de ter uma sólida liderança doméstica. Apesar de ter vivido uma era de populismo nacionalista na década de 1930 (os chamados anos entreguerras) e se estabelecido para prevenir conflitos políticos que levaram à Segunda Guerra Mundial, a União Europeia está realmente lutando para impedir a ascenção desse déjà vu entreguerras.

As razões para isso são multifacetadas, mas essencialmente se baseiam na lacuna percebida entre os decisores políticos da União Europeia e os cidadãos comuns, uma falha em escutar os desejos e as necessidades de cidadãos, e o fracasso em disseminar, de modo adequado, a riqueza da globalização e o mercado único europeu.”

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França veta termo "raça"

28/06/2018

 

 

Desde ontem, a palavra “raça” não existe mais no artigo 1º da Constituição da França. Os deputados franceses, reunidos em comissão, eliminaram, por unanimidade, o termo do documento, forjado seis décadas atrás, e acrescentaram a proibição da “distinção entre sexos”. Sob o argumento de que não existem “raças”, os legisladores da esquerda e da direita sustentam que todos os cidadãos são iguais. Se esSas mudanças forem votadas durante o exame em sessão do projeto de revisão constitucional, o artigo modificado ficaria assim: a França “garante a igualdade ante a lei de todos os cidadãos, sem diferença de sexo, origem ou religião”, ao invés de “sem distinção de origem, raça ou religião”.

Sobre a eliminação da palavra raça, todos os grupos parlamentares apresentaram emendas, considerando que o termo, introduzido na Constituição de 1946 para rejeitar as teorias racistas depois do nazismo, não carecem mais de fundamento, pois se demonstrou que não existem raças na espécie humana.

Houve também consenso sobre a proibição da “distinção entre sexos”. “Para chegar a uma sociedade igualitária, esse princípio de igualdade entre mulheres e homens ante a lei deve ser irradiada por toda nossa legislação”, afirmou a Delegação dos Direitos das Mulheres em sua emenda adotada. Os deputados, no entanto, recusaram a proposta de feminizar os títulos de vários ocupantes de cargos importantes. Por enquanto, a palavra “presidente”, por exemplo, não terá equivalente no feminino — “presidenta”.

Ex-presidentes

Durante a campanha eleitoral de 2012, o ex-presidente François Hollande prometeu relegar a palavra “raça” aos livros de história. “Não há raças diferentes”, declarou ele, ao avisar que o termo “não tem lugar  na República”. Por sua vez, o também ex-presidente Nicolas Sarkozy tinha criticado a proposta de emenda à Constituição. “Se apagarmos a palavra ‘racismo’, isso significa que o mesmo não mais existirá? Isso é um absurdo”, protestou.