Correio braziliense, n. 20112, 15/06/2018. Mundo, p. 10

 

Aborto legal avança

15/06/2018

 

 

AMÉRICA LATINA » Ao fim de 23 horas de sessão, deputados argentinos aprovam projeto que legaliza a interrupção da gravidez até a 14ª semana. Votação apertada confirma a divisão da sociedade e anuncia disputa acirrada no Senado

A Argentina deu na manhã de ontem um passo inédito com a aprovação, na Câmara dos Deputados, de um projeto que legaliza o aborto até a 14ª semana de gravidez — a legislação em vigor permite o procedimento apenas em caso de estupro ou de risco para a vida da gestante. Movimentos feministas e setores políticos de esquerda comemoraram a decisão, tomada por 129 votos contra 125, com uma abstenção, ao fim de uma sessão que se arrastou por mais de 23 horas e foi acompanhada por milhares de partidários e adversários da proposta, concentrados diante do Congresso. As atenções se voltam agora para o Senado, onde o projeto poderá entrar na pauta dentro de uma semana, mas a expectativa é de que seja votado apenas em setembro.

A Conferência Episcpal da Argentina (CEA) divulgou nota na qual deixa à mostra o mal-estar com o voto dos deputados, especialmente incômodo para o clero na pátria do papa Francisco. “Como argentinos, esta decisão nos dói”, diz o texto emitido pelos bispos. A influência da Igreja é tradicionalmente mais forte no Senado, naturalmente de tendência mais conservadora e ligado mais diretamente aos governadores de províncias — vários deles opositores do aborto. As repetidas mudanças de opinião dos deputados, no entanto, tornam imprevisível o desfecho do processo, marcado desde já pela intensa mobilização social em ambos os campos.

Para os militantes pró e anti-aborto que passaram toda a quarta-feira e a madrugada de ontem em vigília, o debate e a votação do projeto na Câmara foram marcados por emoções intensas e reviravoltas. Enquanto se sucediam os discursos, as projeções sobre o resultado eram sucessivamente alteradas — e, em plena madrugada, apontavam para a rejeição da proposta por 128 votos contra 126. Por volta das 7h30, um grupo de deputadas favoráveis à legalização do aborto convocou entrevista coletiva para pedir ao presidente Mauricio Macri que intervir para evitar o fracasso da iniciativa. A reviravolta veio pouco depois das 8h, quando o parlamentar justicialista (peronista) Sergio Ziliotto anunciou a mudança de voto de dois correlionários que, até então, se declaravam contrários ao aborto.

“Histórico”

O presidente Mauricio Macri, que se opõe ao projeto, mas abriu caminho para o exame da proposta no Legislativo, destacou o “debate histórico” na Câmara dos Deputados e reiterou a determinação de não vetar a lei, caso ratificada pelo Senado. Da cidade de Paso de la Patria, Macri enviou “parabéns” aos deputados e, sem fazer referência direta ao resultado da votação, lembrou que o processo “continua agora no Senado”. A imprensa argentina destacou o fato de o presidente ter abordado o assunto ao lançar um programa de preservação ambiental chamado “Seguro Verde” — coincidentemente, a cor adotada pela campanha pró-aborto.

“Quero destacar, nesses meses, o trabalho dos deputados e de todos os argentinos que fizeram um debate histórico, típico da democracia”, ressaltou Macri. “Conseguimos resolver nossas diferenças com respeito, com tolerância, ouvindo o outro, entendendo que o caminho do diálogo é o caminho que fortalecerá nosso futuro.”

Os sinais de que a próxima etapa da tramitação do projeto promete ser intenso e polarizado vieram nas primeiras horas após a votação na Câmara. Os poucos senadores que se dispuseram a abordar o tema expressaram apoio a mudanças na legislação sobre o aborto. Os líderes dos dois blocos majoritários, Miguel Ángel Pichetto (Partido Justicialista) e Luis Naidenoff (Cambiemos) arriscaram a previsão de que o projeto terá os votos necessários para a aprovação. Sintomaticamente, a Frente pela Vitória, da ex-presidente Cristina Kirchner, fechou questão em favor da legalização do aborto.

Em uma sociedade onde permanece forte a influência da Igreja Católica, reforçada pela eleição do papa Francisco, o resultado da votação na Câmara se torna ainda mais relevante e incômodo para a Igreja. A nota da Conferência Episcopal afirma que “a dor pelo esquecimento e pela exclusão de inocentes deve transformar-se em força e esperança, para continuarmos lutando pela dignidade de toda a vida humana”. Os bispos sustentam que “a situação das mulheres frente a uma gravidez não esperada, à pobreza, à marginalidade social e à violência de gênero continuam sem resposta”. “Simplesmente, foi agregado outro trauma, o aborto. Continuamos chegando tarde”, diz o texto.

Cristina vira a casaca

A primeira reviravolta na discussão do aborto legal no Senado pode ter vindo ontem, com o anúncio de que os nove integrantes do bloco Frente pela Vitória (FPV) votarão a favor do projeto. A ex-presidente Cristina Kirchner, líder do grupo, manteve até ontem posição contrária à legalização. Durante seus dois mandatos, chegou a dificultar a abertura do debate no Congresso. A bancada do FPV é a terceira maior do Senado.

 

Frases

“Conseguimos resolver nossas diferenças com respeito, entendendo que o caminho do diálogo é o caminho que fortalecerá nosso futuro”

Mauricio Macri, presidente da Argentina

 

“Como argentinos, esta decisão nos dói”

Conferência Episcopal da Argentina